A voz narrativa d’O meu mundo de João de Melo opta por conceder a oportunidade de discurso a diversas personagens. De tal modo que, no seu todo, essas vozes secundárias acabam por servir o propósito da teorização acerca daquela comunidade açoriana na busca imparável pela sua libertação. Inicialmente os habitantes da freguesia consentem na sua própria subjugação ao regedor e ao padre. E apesar de algumas movimentações – com destaque para a resistência de João Maria e de Sara -, o discurso do Padre Governo continua a aliar-se ao do administrador no sentido do controlo dos habitantes da freguesia:
Não se imiscuía em assuntos de zaragateiros. Para isso existiam as autoridades civis. Fossem elas na paz-zinha de Deus, porque ele Seu ministro, não tinha poderes contra o sinal dos tempos. Pôde contudo a sua voz avinagrada, logo no domingo seguinte, berrar contra a perversão do espírito evangélico da paróquia, onde os iníquos não só não respeitavam Deus como estavam agora atacando os defensores da ordem e da moral. (85)
Neste excerto, o sacerdote recorre a marcas ideológicas que traduzem claramente a arrogância com que se dirige aos paroquianos, começando por se esconder atrás da mensagem de Deus, para pouco depois passar à divinização do poder civil de forma vária. As invetivas são lançadas do púlpito da igreja a partir de uma localização física superior, reflexo simbólico de uma aparente espiritualidade de exceção. Neste sentido, o padre surge como o intermediário de um Deus dono dos homens e das mulheres. O Padre Governo repreende o seu rebanho não só por não respeitarem Deus mas também por se rebelarem contra a ordem e a moral do Estado.
Um cenário de menorização da humanidade – como o que se apresenta nesta obra – tem como consequência o apagamento das convenções. E a um tempo disfórico sucede a reação eufórica de cada um, individualmente ou como todo. João-Lázaro é o profeta que anuncia um mundo novo a esta comunidade, mas a semente do seu discurso precisa da emergência de uma vontade reivindicativa; facilitada pelo processo de consciencialização da comunidade contígua à vivência animal. Adelaide Baptista em “Considerações à margem do romanceiro” do seu livro João de Melo e a literatura açoriana refere-se ao exercício mitificador subjacente à imagem do animal nos Açores por parte do autor natural do Nordeste da Ilha de S. Miguel:
Se os mitos, segundo o consagrado estudioso Northrop Frye (Words with Power), desempenham o importante papel de definir uma sociedade, tributando-lhe todo um conhecimento que lhe é particular, podemos concluir depois de o constatarmos como verdadeiro relativamente à obra de João de Melo que o mito do pássaro e do pombo reactualiza a consciência social do açoriano fornecendo-lhe uma nova visão e preparando-o para a ruptura e evolução na conquista de uma nova ordem. É por isso que apesar de um percurso narrativo de ritmo apocalíptico, que caracteriza grande parte da ficção deste escritor, o texto acaba sempre por celebrar a redenção.(16)
O meu mundo, sendo uma obra acerca da condição desigual do ser humano, explora o atingir de um ponto de saturação. Todos os elementos naturais – humanos, animais, vegetais – entram em processo de falência, em consequência de uma má gestão pessoal ou interpessoal. A natureza da ilha atinge um estado de insustentabilidade com a chegada de João-Lázaro e a queda do avião no Pico da Vara. A partir daí, a libertação última terá de ser conseguida através da recuperação do poder pelo coletivo, os cavadores. Só estes atingirão a libertação final, num momento em que já não é previsível que o façam. Por isso é que a queda do avião não pode ser considerada o último movimento da comunidade. Isto é, não é a morte estrangeira que vem trazer a libertação do povo, mas sim a morte no seio da comunidade. O grande acontecimento decorre da morte de uma mulher – Glória – às mãos do marido, num ato de desespero dele muito além do que o seu discurso afirma: “DIZ-SE QUE, na noite em que a estrangulou, o mastodonte a fornicou seis vezes ininterruptas, rugindo que lhe desse um filho, e que à sétima tentativa, quando berrava ‘Apenas um filho, lástima de mulher,’ se encheu de uma ira sem explicação e lhe enfiou as mãos à volta do pescoço” (253). A pulsão da violência do regedor só pode fazer sentido no contexto de um quadro psíquico definido pelo esgotamento da sua capacidade de interação interpessoal.
No que se refere a Glória, a leitura do ensaio de Sherry Ortner “Is female to Nature as Male Is to Culture?” ilumina o destino e as circunstâncias da aterradora morte da mulher do Goraz. No capítulo “Why is Woman Seen as Closer to Nature?” a autora apresenta três tipos de argumentos utilizados na afirmação de que a mulher está mais próxima da natureza do que o homem, os quais se prendem com o corpo e a função procriadora da mulher. É assim que n’O meu mundo, o argumento fisiológico – ironicamente pela impossibilidade de gerar um filho – não só é um elemento de colagem da mulher ao mundo natural como também a conduz à sua própria condenação à morte. Neste universo é o corpo feminino que tem a obrigação passiva de ser engravidado e a ativa de parir. Isto é, é apagada a hipótese da esterilidade masculina. Por isso mesmo, o cunhado, sugere que “O ventre [de Glória] parecia mole e escorregadio como a lama, e ela já não era bem uma mulher, mas um bocado de terra muitas vezes lavrada e sempre sem semente” (254). Num tempo em que o Goraz já falhou no exercício simbólico do poder, ao homem só lhe resta conceber a sua transcendência – e, por conseguinte, a sua vitória sobre a morte – através da descendência. Porém, mesmo a vontade de conceber um filho por parte do Goraz está pejada de marcas ideológicas de uma cultura de poder autocrática, num ato de subjugação da mulher. Isto é, ele apenas consegue conceber o ato maquinal da reprodução, daí que a linguagem baixa seja a que descreve a prática sexual do Goraz. Glória, por sua vez, não é “pessoa.” Resignou-se ao papel de signo, não fala e, como tal, não produz ideias. É uma personagem feminina que aceita a sua desvalorização, sendo um exemplo da mulher que permite a reprodução do modelo social da desigualdade entre homens e mulheres, ao encontro da posição de Simone de Beauvoir (1953) que Sherry Ortner recorda no seu ensaio (53).
A morte de Glória vem desencadear uma sucessão de acontecimentos que conduzirão a uma revolução redentora no seio da comunidade. Da descoberta do corpo da mulher começa a emergir uma voz narrativa até então considerada marginal. A um segundo nível, pode-se afirmar que a falência de um dos irmãos permite que emerja o seu gêmeo. Após ter asfixiado a mulher e simulado o seu enforcamento, Guilherme José compreendeu a sua derrota, pela consciência de ser corpo ele também: “considerou por um momento os póros da pele e, aos gritos, como se pedisse socorro aos numerosos deuses da noite, pôs toda a freguesia em alvoroço” (253). Por sua vez, José Guilherme equipara-se – no sentido de uma proximidade à mulher – ao conhecimento do feminino por parte do narrador. O universo de Glória passara a ser conhecido com a chegada do cunhado à freguesia. Anteriormente apenas se murmurava acerca da infelicidade daquela mulher. Como tal, a mulher silenciada encontra um aliado junto do irmão do marido, logo a seguir ao medo que sentiu aquando da chegada do cunhado lá a casa.
José Guilherme ocupa um lugar intermédio na comunidade, o que equivale a uma posição de observador. Inicialmente, ele é o elemento marginal da família. É o matador de ratos e o homem que violava as vacas como forma de resolver a sua solidão de nómada. No entanto, esta personagem cresce na proporção direta em que a “máquina” social e política falha. Ele é o homem civilizado pelos ratos. Dirá a João-Lázaro, o mendigo profeta agora numa posição epistemológica de observador não participante:
porque os ratos, amigo João-Lázaro, podem ser uma civilização e tudo o que os padres queiram, mas são seguramente uns anjos animais e, tal como os anjos, amam-se entre si devorando-se, prolongando a espécie e preservando-a da extinção, e quando um homem como eu perdeu tudo na vida excepto o direito à sua solidão com os animais, os ratos respeitam esse sentimento. A mim perdoaram-me sempre a caça que lhes dei em tempos, para não morrer de fome. (259)
Talvez devido à convivência com os animais, este homem terá mantido a sua humanidade, sendo o único capaz de dizer o corpo daquela cunhada MULHER. O corpo feminino destruído de Glória é descrito pelo seu olhar: “tinha apenas a enorme pássara entreaberta como um figo e tudo nela se transformara nesse coágulo a meio das pernas, tão magras que um sopro as faria balouçar com o tal ruído de ossos calcinados” (258). A experiência de olhar a vagina da cunhada morta condensa um clímax de tomada de consciência de si e dos outros. É então que o corpo entreaberto da mulher permite que se desencadeie a libertação redentora daquela população, tal como é dito por José Guilherme. Na casa do irmão vai decorrer a recuperação do que lhes tinha subtraído o regedor. São os cavadores, nome coletivo, que tomarão a iniciativa. Eles são os homens e as mulheres com quem se identifica o antigo caçador de ratos agora metamorfoseado na sua humanidade, por ter permanecido amigo dos animais e da cunhada (259).
Neste mundo de João de Melo para a resolução dos problemas importa tanto a apatia como o agir. No fundo, essa apatia proporciona momentos conducentes à mudança. A morte do velho Padre Governo integra-se no ciclo do cansaço, apresentando-se como a conclusão de um período de conjugação do poder religioso com o civil. O padre morre no seguimento da morte de Glória e da consequente derrota do regedor. É uma morte necessária, apesar de já não colher junto da comunidade o interesse que a euforia da falência do Goraz e a libertação da sua mulher pela morte puderam proporcionar. O cadáver de Glória ficara a olhar para os do lado da vida de forma trocista (254). O cadáver do padre apenas se realça pela sua fealdade, de acordo com o relato de José Guilherme a João-Lázaro (263). N’O meu mundo a morte dos justos permite-lhes olharem o lado dos vivos. Depois da vinda de João-Lázaro, passou-se a distinguir o justo do injusto, sendo os mortos justos equiparados aos vivos, num tom de paródia a roçar a boa disposição e um sorriso de quem tem conhecimento de como o percurso se faz. Os passageiros do voo fatídico tinham acabado por se despedir de quem os roubara com um desprendimento de quem se encontra bem consigo mesmo e a morte de Glória também é o atingir desse estado de consciência de si. A morte do Padre Governo redu-lo a uma mera massa disforme.
Irene Amaral
University of Massachusetts Dartmouth
15 de Abril de 2010
Irene de Amaral É natural de New Bedford, Massachusetts, EUA. Viveu em S. Miguel, Açores, entre 1973-1999. Reside nos Estados Unidos desde 1999. Possui uma licenciatura em Ensino de Português e Francês pela Universidade dos Açores e um mestrado em Supervisão do Ensino de Português pela Universidade de Aveiro. Atualmente, é doutoranda em Estudos Luso-Afro-Brasileiros na UMASS Dartmouth, EUA. Os seus interesses de investigação centram-se na literatura e cultura açorianas.