Sobre Mil Anos Menos Cinquenta,
de Angela Dutra de Menezes:
Uma Outra Leitura
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Vamberto Freitas
Venho meio atrasado em relação a Mil Anos Menos Cinquenta, um dos romances de Angela Dutra de Menezes, mas um leitor à distância por vezes só vai descobrindo os seus tesouros de além-mar com alguma sorte ou por puro acaso. Da mesma autora tinha só lido O Português Que Nos Pariu, prosa brilhante mais ou menos romanceada, publicado no nosso país em 2007 pela Civilização Editora, que lançaria pouco depois a obra agora aqui em foco. Nietzsche disse uma vez que o melhor que tinha lido havia encontrado aleatoriamente nas bibliotecas ou nas livrarias. Foi assim que há uns tempos entrei numa livraria de Coimbra, e sem nada procurar em especial dei com Mil Anos Menos Cinquenta nas estantes de “literatura nacional”. Ainda bem que este livro se encontrava à vista no seu lugar correcto, pois em “literatura estrangeira” seria uma deslocação crassa. A autora é uma carioca de descendência trasmontana, ex-jornalista da revista Veja e de O Globo, com outras obras já publicadas no Brasil–Santa Sofia e O Avesso do Retrato, assim como o ainda mais recente A Tecelã de Sonhos. Menciono estes factos porque me parecem por demais interligados às duas leituras que agora fiz da autora: Mil Anos Menos Cinquenta traça as origens e a caminhada de uma família coimbrã desde os primórdios pré-nacionais e acompanhando os séculos que se seguem, cruzando a história privada desse clã com a sorte colectiva do país, “Coimbra” transformando-se aqui simultaneamente em metáfora e símbolo de uma nação nascente e depois mergulhada em sucessivas aventuras, ora épicas ora trágicas, mergulhando entretanto nas conhecidas desventuras provindas dos homens e dos céus, por assim dizer. Curiosamente, num romance de 294 páginas, o Brasil é mencionado de passagem duas vezes, já no fecho do romance. Pelo simples facto da autora ser quem é, e para quem já leu O Português Que Nos Pariu, difícil será não concluir que esta prosa oscilante entre a ironia, o sarcasmo e a ternura de quem na verdade ama os seus, até na sua reinvenção ou transfiguração, se torna num retrato de que e de quem é feito (pois é) o próprio gigantesco Brasil. Publicado no seu país em 1995, terão por certo sido vários factores—as suas linguagens e fluência que agarram o leitor e o fazem querer virar as páginas imparavelmente, a “real” história subjacente à ficção pura, numa imaginação quase delirante, o confronto entre ideologias recebidas seguido da desconstrução implacável das mesmas, o dialogismo e o quotidiano carnavalesco bakhtinianos—que o levaram a receber o prémio de Autor Revelação Bienal do mesmo ano. Por mais estranho que pareça, se a minha leitura de Mil Anos Menos Cinquenta não falha de todo, estou em crer que no Brasil, nem os luso-tropicalistas da geração de Gilberto Freyre (cada vez mais ressuscitado no seu país) nem os detractores mais acérrimos da herança colonial lusa desdenhariam desta estranha e vivíssima prosa em busca da muito antiga nação lusitana e, por inferência inescapável, dos seus legados noutras geografias. Uns diriam: aí estão as nossas “virtudes”, outros apontariam as origens radicais da “tragédia” novo-mundista. Só revisitando e desconstruindo a nossa história se poderá “explicar” o Brasil desde a sua fundação aos nossos dias.
Eis aqui, no seu berço natal, séculos depois, o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, e depois de António Cândido, muito antes de por eles ser topado e explicado no Brasil; eis aqui também a democracia racial, cultural e “religiosa” que demarca o Brasil ante quase todas as outras nações. Mil Anos Menos Cinquenta como que resume o modo de estar e ser de “Coimbra” desde a sua formação pré-nacional entre cristãos, islâmicos e judeus, nessa vivência e por vezes atribulada convivência matriarcal, em que a mulher forte dominava os nossos clãs enquanto se deitava alegre ou tristemente sob os seus homens à procura de prazer e herdeiros. A felicidade só vinha, só poderia vir, quando se amava a “pessoa errada”. Foi tudo antes da chegada da “ideologia” ou da “pátria”, num espaço em que o “privado” não cedia nem poderia ceder nunca ao “público”, divisão total e absoluta, e quando teriam de interagir era sempre num jogo de sobrevivência, ou num fingimento lucrativo ou salvífico, mas só para a família em cena. Todos aqui, os do clã, têm olhos mouriscos e os cabelos ruivos dos celtas, todos demonstram a astúcia trágica dos judeus apanhados entre esses dois mundos. Foi a mescla total, mas nunca totalizante, até à chegada de influências exteriores e mais poderosas, cada domínio pré e depois português exigindo a atenção dos seres híbridos em que desde de sempre nos tornámos. A partir daí, a nação maioritariamente passa a sobreviver num precário equilíbrio de cedências e resistências. Engana-se quem pensar que Mil Anos Menos Cinquenta é um “romance de tese”.