Longe disso, a sua ideologia é não ter ideologia, a não ser a da sobrevivência de cada um antes os poderes dos grupos que se sucediam. É uma visão ou revisitação artística de como poderá ter sido—de como foi?—que um pequeno povo criou uma nação e se tornou num país (o mais velho da Europa, como estado unitário e fronteiras delineadas), ironicamente sempre afrontando a primazia do “público” que raramente conseguiu sobrepor-se ao “privado”. O “estado”, para nós, sempre pertenceu aos poucos que o iam herdando ou usurpando. A maioria existia calada mas atenta nos seus recantos de cultivo ou mendigagem. Há palavras que se repetem interminavelmente neste romance: “esperto”, “esperteza” e “tolo”. William Faulkner já dizia que quando essa obsessiva repetição acontece na ficção, o leitor deve ficar especialmente atento. Quem é que ainda hoje não as ouve por cá? Os “espertos” sabiam que a sua existência dependia da sua descrença na bondade dos que os governavam e comandavam, sem nunca deixar de fingir o que cada época exigia deles. Foi quando os islâmicos e judeus já se pretendiam cristãos entre os vizinhos e praticavam a sua verdadeira fé e cultura portas adentro. É dessa dialéctica diária e escondida entre a vida e a morte que nasce uma nação com os seus traços fundamentais: tolerância, respeito mútuo, alegre miscigenação racial, cultural e até linguística, e sim, a inevitável descrença nas pregações institucionais de cada tempo por eles vividos e lembrados. A nação era também feita de padres e poetas? Pois. Só que os Dez Mandamentos eram por demais negativos e de todo proibitivos, negavam os prazeres puros do corpo, a palavra não dava pão nem protecção, contradiziam em absoluto o que os poderes viviam e praticavam impunemente, queimando todos os outros nas fogueiras acendidas em ambiente carnavalesco para delírio animalesco dos pobres de espírito. Outra repetição de Mil Anos Menos Cinquenta: os “espertos” ficam sempre de boca calada, não têm opiniões, nunca confessam os seus verdadeiros pensamentos a estranhos, pois tudo pode ser utilizado contra o clã, a nossa família. Ignora o mundo, eis um mandamento realmente útil, e vive em paz. Dos combates vitoriosos ao lado de Afonso Henriques à expulsão guerrilheira da esfrangalhada tropa de Junot muitos séculos depois, bom, tenta retirar daí, do teu esforço sacrificial, algum proveito palpável em retorno, venha em terras ou em ouro.
Cada capítulo de Mil Anos Menos Cinquenta vem sob uma entrada dos Evangelhos, do Velho Testamento ou do Alcorão. Como que a dizer: sob a luz do sol ou a escuridão da noite, nada de novo no comportamento ou na condição humana, os nossos desejos são atávicos e sem idade. O único “pecado” é não “viver”, com tudo o que o corpo pede, sem que se moleste o próximo. Os “tolos” tratam do resto.
Comunidades
02 mai, 2010, 09:04
Sobre Mil Anos Menos Cinquenta, de Angela Dutra de Menezes: Uma Outra Leitura VAMBERTO FREITAS (2/3)
"Livro da genealogia de todos nós, filhos de Deus ou do Diabo, conforme cada destino.
Ab’ul e Urraca geraram Afonso. Afonso gerou Pedro Afonso. Pedro Afonso gerou Fernando. Fernando, de Arshan, gerou Nabila e o varão Paulo Pio. Nabila gerou João Afonso e Mona. Mona gerou Joana. Joana gerou Brites. Brites gerou Constança. Constança gerou Ana e então teve o exílio de Coimbra." (1995:14)