Sobre o teu livro, queria dizer-te que
José Francisco Costa
(escritor,compositor,professor, açoriano da Ilha de São Miguel)
O meu (des)conhecimento das letras em tom de crítica impede-me, sempre que escrevo sobre o que leio, de ir para além do que foi escrito. E há livros que – porque desde as primeiras páginas convidam (e até exigem) ao recolhimento intensificador da atenção para o significado – me deixam sem outro discurso, a não ser o que se reduz ao comentário sobre a impressão, ou impacto, da palavra lida. Sai-me sucinto o ensaio. Fogem-me as referências. Escondem-se as citações. Recolhem-se os nomes às escolas e movimentos literários. Torna-se-me impossível a generalização, porque os casos concretos se acumulam com os seus contextos muito próprios. No entanto, fica-me a pessoal certeza de que não terei andado parafraseando críticas de circunstância. Tudo isto para te dizer, meu caro Eduino, que é maior a vontade de rabiscar, em conversa contigo, algumas páginas sobre o teu livro, do que o meu desejo de, em académico tom, contextualizar esta escrita através de mais de meio século da tua vivência dela. Claro que a obra merece as duas abordagens. Fico-me pela primeira, como ficou dito, e até porque o prefácio de António Manuel Couto Viana – peça crítica de fundamental importância para a compreensão da tua poética – me deixou, por isso mesmo, o caminho aberto para este arrazoado.
Porque referi o substantivo “conversa”, permite-me a generalização, conscientemente paradoxal, já que o semema é todo ele imbuído de significância empática: o teu livro sabe-me a um longo silêncio falante, pois que o som da tua escrita é um eco de uma conversa para a qual o leitor avisado, e só ele, é atraído. O livro é o “eco” de uma conversa primordial entre mim e ti, onde a fala é, ab initio, o melhor veículo de entendimento. Vejo os teus poemas como os sinais da dispersão de ti para quem te quiser “ajuntar” no espaço da compreensão. Ao contrário do mito, ou como desvio dele, o teu ekos não é castigo imposto por deuses que tentas esconjurar com o bico da tua pena: cada um dos teus poemas é um pedaço do “eu” poético por ti intencionalmente distribuído no tempo. Assim, tornas possível, realizável, um (re)encontro entre a mensagem e o destinatário, e em que as palavras são os catalisadores da aproximação. As palavras passam a ser verdadeiros sinais do silêncio; e nele se tornam os elementos loquazes que nos permitem, a mim e a ti, entrar à conversa, num diálogo íntimo e de profundidade. Onde só o silêncio se ouve.
A tua poesia é acima de tudo uma reflexão sobre o que te acontece e sobre o acontecimento que te toca de perto e de longe. Estás no centro e nas margens do teu texto. Evitaste o exagero do hermetismo reflexivo, e, para tal, recorres à memória e às referências cinestésicas da alma, onde te escondes, te revelas, te abres e fechas de encontro ao leitor. Não emparceiraste no jogo de cabra-cega em que as palavras se querem reveladas a custo e a troco do esforço hermenêutico. Claro que nem tudo o que escreves está definitivamente dito. E é bom que seja assim. O contrário seria o aniquilamento da componente sugestiva que todo o Poema encerra. Vais ”soluço a soluço/verso a verso” (85) experimentando o “voo” que é a intrínseca necessidade de ultrapassar o óbvio, e transcender o significado imediato e prosaico da existência. Talvez seja porque te decidiste pela parcimónia verbal, que a maior parte dos teus poemas são mancheias de um conduto conservado e temperado pelo tempo. Isto para dizer que o leitor atento e prevenido poderá perceber (ia a dizer, saborear) os sabores das influências que, subtilmente, condimentam a tua poética. Falo em influências, porque, felizmente para quantos, como eu, apreciam a originalidade dos simples, não construíste “escola” nem iniciaste “movimento”. Permaneces identificado contigo mesmo, escrevendo o “eu” em diferentes contextos. Não te fixas em formas e conteúdos espartilhados. Percorres com facilidade as inúmeras virtualidades do verso, desde o branco ao mais puro alexandrino, da redondilha simplesmente lírica ao verso quebrado por propositado enjambment. E não só não disfarças essa tua lírica herança vinda dos nossos cancioneiros, como te afirmas ombreando com os nossos mestres da reflexão poética. A tua atitude perante a poesia lembra-me Teixeira de Pascoaes, Pessoa, ou Régio, e até Sena. Se, por um lado, trazes contigo, como “sina”, a inquieta / imaginação / doentia / de poeta (105), por outro, vives a poesia como “aventura secreta” de que és o “Anjo noctívago” (108). Assim, implicitamente aceitas a tua “missão” de poeta. Só que, és do silêncio um profeta, convencido que estás, e estamos, de que a poesia, que não se entende, morre sem dizer nada – cadáver mudo. E assim, com os teus poemas, na sua generalidade, de extrema contenção verbal, anuncias, proferindo a teu modo, os ancestrais sentimentos, as profundas inquietações, as constantes interrogações da humanidade. Os temas da tua preferência (Ou as ideias-força que movem a tua vontade de escriba predestinado) coincidem com os clássicos universais que enformam o melhor da nossa literatura. A poesia é um “testemunho”, uma busca incessante do que somos, o relatório da nossa constante interrogação sobre a vida. Só que a grande novidade da tua escrita está na ligação que estabeleces entre a vivência destes preocupações com as duas razões fundamentais da tua poesia: amor, noite. Ao longo do livro fui-me apercebendo do modo como, com diferentes afinações de voz, espaço e ritmo poéticos, tanges todas as cordas que revelam as inúmeras gradações da definição do amor. Como exemplo, só referirei o “LUCCIA” (114), em cuja forma, um soneto propositadamente desarticulado, se contém toda a lusíada (claro que a camoniana, e não só) ambiência dolorosa de amor (des)feito: Não é a tua boca: É o teu silêncio / (. . .) Não são os teus olhos: É a tua ausência, / (. . .) Não são as tuas mãos: É como as deixas / (. . . ) as tuas mãos com que, ausente, ainda me acaricias. (114). No entanto, gostaria de dizer-te que espero que se venha a prestar verdadeira atenção crítica à sequência metafórica sobre a “noite”, que se me revela na tua obra. Vou arriscar, e dizer que fazes da “noite” o teu motivador de inspiração. A noite é o ambiente propício à interrogação poética sobre a existência. Ela é o espaço e o tempo geradores da tensão criadora do poema. Por um lado, a tua noite é Fantasma de longuíssimos cabelos (131); por outro, ela é e tem a sedução / de um oásis (63). A noite misericordiosa (. . .) redentora (. . . ) messiânica (. . . ) [e] única (174) é o lugar primordial do “eu”, inscrito nos teus poemas. Para ti ela estende a mão (174) e te recebe, a ti, poeta símbolo da humanidade caminhante, qual “cristo” em “gólgota” coberto de um manto esburacado de estrelas (207). Não deixas por mãos alheias a promessa da universalidade da tua poesia, na medida em que, a teu modo (pelo “silêncio” e pela calada da “noite”) emprestas o teu importante contributo à reflexão constante e construtiva sobre a nossa humanidade.
Mas, não posso terminar estas linhas sem me referir à componente insular de uma boa parte dos teus poemas (quase todos de pequena extensão – para que não se dilua o significado – como ilhas.) A definição de ilha tem sempre a ver com a descrição do seu horizonte. Assim, os teus poemas, concentrados de
palavras e com largueza de perspectivas, estão imbuídos de todas as insulares ressonâncias, com destaque para a presença do mar que determina a pequena grandeza do mínimo de terra, donde constantemente parte um navio como “bando de pombas [. . . ] pelo azul dentro, para parte nenhuma. (172) E deixa referir, a propósito, a tua peça “Da Flor do Arco-Íris as Pétalas” (117), um exemplo acabado de metonímia da nossa insular idiossincrasia, sujeitos que somos da perpétua tentação do venenoso convite de um barco alado. Por tal, com a alma continuamente a sonhar, somos crianças irremediavelmente infectadas por uma “saudade marítima”, sempre enfeitiçadas (preso [s] e surpreso [s]) (119) por uma saudade, única companhia que de nós nunca se despede:
O peso
que têm os teus dedos,
Saudade!
E, todavia, que bom
senti-los sobre os meus olhos…
(119)
Por fim, queria dizer-te o que vai para além destas linhas. Fico-me neste meu silêncio muito menos eloquente que qualquer um dos versos agora repousando no teu livro – o “silo” onde a tua noite dorme com o silêncio, em gestação de palavras inquietas.
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Fotos:acervo Blog Comunidades