Tanto nas ilhas como em Santa Catarina se encontram “impérios”, estes assim descritos no livro: “Os antigos impérios eram construções quadrangulares, de uma só peça e de pequena dimensão, tendo por abertura uma porta fronteiriça e duas janelas laterais e um frontal triangular encimado por um dos símbolos do Espírito Santo – a pomba ou a coroa – e o registro da data da sua elevação.” Uma comparação entre estes dois rituais dificulta-se sem embargo pelo facto de no primeiro caso diferirem de ilha para ilha e até de freguesia para freguesia, no segundo de município para município e em ambos de época para época. Algumas facetas gerais são no entanto factíveis de se determinar na base do exposto em Caminhos do Divino e de fontes insulares. Em Santa Catarina após a coroação realiza-se um bodo em frente do “império” e a arrematação de oferendas que podem ir de massa sovada ou do terceirense alfenim até gado.
Como tão detalhadamente se ilustra em Caminhos do Divino, no Brasil manteve-se intacta a simbologia do festival. S
De igual modo se preserva a tradição dos bodos, na nova terra designados como banquetes.
Tal acontece, por exemplo, com o espadim. Representando o filho da Rainha Santa Isabel e envergando trajes medievais, como antes se referiu, está ausente nas festas de várias ilhas. Em São Jorge, contudo, figura nas procissões um menino transportando uma espada, ao qual se dá esse nome. Em oposição, existiu tempos atrás no arquipélago o “agarrador”, encarregado de assegurar que não ficasse um só lugar vago ao serem servidas as sopas.
Embora o mecanismo das celebrações e as atribuições dos seus actuantes sejam sensivelmente paralelas, nota-se de facto em vários pontos dos Açores o desconhecimento de certas designações de figurantes nos cortejos. Alferes de bandeira e mestre-folião podem no entanto ser aqui e ali títulos correntes. Pelo menos em São Jorge não se conhece a expressão “alferes de bandeira”, sendo a respectiva função desempenhada nos cortejos pelo “cavaleiro”. Elementos como imperatriz, menino-imperador, menina-imperatriz ou corte imperial estão ausentes do uso insular
Em Santa Maria, pelo menos, verifica-se, tal como em Santa Catarina, a presença do trinchante, no primeiro caso identificável pelo seu lenço de seda ao pescoço. É ele o responsável pela confecção e apresentação dos bodos, no que é coadjuvado pelo mestre-sá (mestre de sala), o copeiro, encarregado de servir o vinho, os brindeiros e os serventes.
Por décadas, em Santa Catarina, a ementa das refeições festivas revelou um cunho aleatório, podendo incluir, por exemplo, churrasco ou galinha assada. No entanto, as açorianas “sopas do Espírito Santo”, talvez reminiscentes da alimentação típica da nobreza medieval, esta à base de pão e carne, só fizeram a sua aparição há pouco na cidade de Palhoça. Introduzidas por um padre faialense e agora denominadas “sopão do Divino”, em breve se disseminaram por outros lugares. A massa sovada é também parte da culinária da Festa do Divino em terras catarinenses.
Em ambos os lados do Atlântico o clero local tem tentado neutralizar o cunho pagão de certas modalidades do ritual do Divino. Assim, no município catarinense de Laguna continuadas interferências eclesiásticas desaprovaram as manifestações populares e retiraram à festa muito do seu esplendor
Quanto a um caso extremo, a autora desta obra escreve: “Cabe considerar que a festa de Itajaí tem um caráter unicamente religioso. Os folguedos populares e o espaço leigo da festa foram descartados, ou melhor, não foram resgatados.”
No que diz respeito aos Açores, uma vez o bispo da diocese proibiu que a bandeira do Espírito Santo fosse levada nos cortejos pela esposa do imperador ou qualquer outra mulher.
Numa freguesia micaelense o pároco, que com mão férrea detinha absoluto domínio da vida comunitária, pura e simplesmente proibiu qualquer ligação da sua igreja com as festividades, o que causou que estas deixassem de se realizar. Outros sacerdotes desaprovaram e procuraram impedir os folguedos, incluindo baile, que se seguiam à reza do terço em casas particulares.
Em 1959 registou-se forte oposição a uma longa nota do Bispo de Angra, D. Manuel Afonso de Carvalho, no sentido de restituir a festa à sua pureza primitiva proibindo novos impérios sem licença superior, bem como divertimentos profanos e a participação de meninas com mais de doze anos nas coroações.
Em 1961 o mesmo bispo emite um regulamento de onze artigos sobre a realização de festas religiosas. Quanto às do Espírito Santo, entre as suas minuciosas determinações contam-se, por exemplo, a proíbição de sessões das irmandades sem a presença do pároco e a interdição da presença de filarmónicas nos cortejos. Tudo isto levou a um violento repúdio por parte da comunidade.
9. O caminho catarinense face ao insular: as divergências
Para além das ocasionais discrepâncias antes referidas, as duas mais flagrantes divergências entre a prática catarinense e a insular fazem-se sentir no caso da primeira, numa maior presença de actos litúrgicos e no impressionante fausto das celebrações.Em outro ponto narra-se que após haver recebido a coroa e o
ceptro, símbolos do poder temporal, o imperador e a sua corte se dirigiram em procissão ao consistório, onde havia sido montado um império, ricamente decorado com veludo e grande abundância de flores. Aí o imperador recebeu a homenagem dos assistentes à missa.
No que concerne à sumptuosidade do festival,
Uma destas fotografias, a todo o tamanho da página, mostra o esplendor do vestuário de um casal imperial. Ele vem de bicórnio de plumas, jaqueta azul escuro de gola vermelha adornada de cordões e alamares dourados, uma faixa azul claro do ombro direito até à anca esquerda, calção branco e botas de montar. Com a mão direita empunha uma espada.
A seu lado a imperatriz ostenta uma coroa cor de prata e usa um vestido branco de listas cinzento claro, de saia largamente rodada até aos pés, e casaco e luvas brancas.
Noutra ilustração pode observar-se uma fila de meninos-imperadores lado a lado com meninas-imperatrizes, todos também de imponentes trajes de época. Vê-se também como em cada um de vários cortejos aparecem dezenas de figurantes com variegadas roupagens. Em alguns casos a imperatriz leva um longo manto, detido na cauda por uma menina de igual modo vestida a rigor.Pelo que se pode deduzir da leitura de Caminhos do Divino, a componente religiosa chega a atingir uma notória grandiosidade. Assim, uma solene missa de coroação, em Florianópolis, foi concelebrada por dois sacerdotes, um deles o reitor da Catedral, e cantada por um coral regido por outro sacerdote. Deste modo, antes de mais, há que recordar que nos Açores as cerimónias religiosas se limitam estritamente à missa da coroação. Na prática brasileira note-se, por exemplo, o ciclo de novenas na igreja matriz até o Domingo de Pentecostes. Nas ilhas reza-se o terço em casa do mordomo,
frente à coroa exposta num pequeno altar, ao que se segue comida e baile.ão pois de um modo geral idênticas na sua forma as alfaias utilizadas nas cerimónias do culto, tais como a coroa, a salva, o ceptro, as varas e a bandeira, esta também de damasco e de cor escarlate com a imagem da pomba bordada a branco em relevo. Em ambos os casos a bandeira pode ser branca, como símbolo de paz.Assim, em casos pontuais podem-se também apontar divergências na terminologia referente e elementos da festa, como a atribuída a membros do elenco das cerimónias. Por outro lado alguns não são conhecidos em todas as ilhas açorianas. É idêntico o processo de selecção do presidente ou do imperador, efectuado por sorteio em que uma criança escolhe ao acaso um cartão com um nome, retirado de uma cesta ou chapéu no caso açoriano e de uma salva de prata colocada sobre o altar-mor da igreja no catarinense.Em Florianópolis uma criança aproxima uma pomba ao
altar e espera que a ave toque com o bico num dos sobrescritos.numerosas fotografias incluídas em Caminhos do Divino ilustram como em Santa Catarina o cerimonial se reveste de um fausto e pompa absolutamente desconhecidos nos Açores.Com respeito a todo este grandioso aparato, é necessário não olvidar que ao longo de difíceis tempos
E
Entre contrastes de menor relevo note-se que a festa insular tem muitas vezes decorrido em comunidades muito carentes. Assim, a vistosidade do vestuário observável em Santa Catarina contrasta com a sóbria indumentária dos participantes açorianos. Em freguesias mais pobres o imperador tem podido apenas envergar o fato que usou na cerimónia do casamento e a menina que transporta a coroa usar o seu vestido da primeira comunhão.m dias recentes, todavia, por influência de imigrantes em férias mais prósperos (ou mais inclinados à ostentação), algumas senhoras usam vestidos coloridos. De resto, apenas há que referir as algo singelas vestes da figurante representando a Rainha Santa Isabel e as capas de damasco vermelho usadas pelos foliões.o Hino do Espírito Santo, tocado pelas filarmónicas das ilhas durante a coroação, é desconhecido em Santa Catarina. Não se torna estranho que assim o seja, já que a composição data de cerca de um
século após a chegada dos casais açorianos. De facto a sua letra foi dada a conhecer no Açoriano Oriental de 5 de Junho de 1852.De igual modo a tourada à corda, da segunda-feira de Pentecostes, não se pratica em Santa Catarina.10. Umas breves palavras finais
Caminhos do Divino é uma obra que se tornava necessário escrever, na medida em que tão lúcida e conscienciosamente destaca o entusiasmo e muito considerável fidelidade à secular tradição com que a festa do Espírito Santo se continua a celebrar em terras de Vera Cruz.
Este culto ao Divino, na sua dinâmica sobrevivência no Sul do Brasil, o ponto mais distante da sua origem entre os outros em que se celebra, representa um fenómeno de inegável interesse que não poderia ser ignorado. Bem haja pois, Lélia Pereira da Silva Nunes, pelo seu meritório trabalho de análise e divulgação!
Eduardo Mayone Dias
In: Cartas da Califórnia
Resenha publicada no Jornal Portuguese Times,nas edições de 7,14,21 de abril de 2010 (New Bedford,EUA)
Sobre o Autor: Eduardo Mayone Dias:
Eduardo Mayone Dias nasceu em Lisboa. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Doutorou-se em Literatura Hispânica pela University of Southern Califórnia, Los Angeles (USC). Desenvolve a vida acadêmica em diferentes instituições e países. Começando na Universidade de Cambridge, Inglaterra, como Leitor de Português. Segue para o México onde foi Professor na Universidade Militar Latino-Americana e no Instituto Anglo-Mexicano. Em 1961 chega nos Estados Unidos, sendo Professor assistente de Português no Defense Language Institute de Monterey, Califórnia e desde 1964 foi Professor da Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) até se reformar. Sua vida não girou em função da vida acadêmica. No ensino e na investigação Mayone Dias foi inovador. Numa aracnídea teia envolveu a universidade e as comunidades portuguesas.
Produção Literária: Menéndez Pelayo e a Literatura Portuguesa, Coimbra, 1975;Portugal: Língua e Cultura, (co-autor), Los Angeles, 1978;Crónicas das Américas, Lisboa, 1981;Cantares de Além-Mar, Coimbra, 1982;Açorianos na Califórnia, Angra do Heroísmo, 1982;Coisas da Lusalândia, Lisboa, 1983;100 Anos de Poesia Portuguesa na Califórnia, (co-autor), Porto, 1986;Novas Crónicas das Américas, Cacilhas, 1986;Falares Emigreses, Lisboa, 1990;Brasil: Língua e Cultura, (co-autor), Newark, Delaware, 1992;Crónicas da Diáspora, Lisboa, 1992;Escritas de Além-Atlântico, Lisboa, 1993;Portugal: Língua e Cultura, nova versão, (co-autor), Newark, Delaware, 1995;O Meu Portugal Antigo e Distante, Rumford, RI, 1997;Miscelânea LU.S.A.landesa, Lisboa, 1997; Portugueses no Vietnan, 2000 co-autor);A Presença Portuguesa na Califórnia, Peregrinação Publications,Rumford, RI 2002.
Presente em incontáveis publicações,possui várias centenas de artigos e crónicas sobre diferentes aspectos das literaturas e culturas hispânicas. Colabora em jornais e revistas do País e do exterior,especialmente da Comunidade Portuguesa como os jornais Tribune Portuguese, (Califórnia) Portuguese Times (New Bedford), e a Revista ComunidasUSA.
Prêmios: Por sua obra e importante divulgação da língua e cultura portuguesa recebeu o grau de Comendador e Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique e a Medalha de valor e Mérito das Secretaria de Estado da Emigração, do governo de Portugal. Nos Estados Unidos foi alvo de várias homenagens e condecorações. No Brasil,é membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.