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O nosso protagonista recusa a impressionante suíte Peacock, para manter o estilo por que optara (22) — o de Rouxinol — uma ave que canta em português, não uma ave que se pavoneia! Uma ave que não é vistosa, mas que encanta pela voz, que inspira e que perdura para além da morte da forma. E é em Goa que o Rouxinol vai encontrar essa resistência à morte, ou se quisermos, o testemunho de um passado histórico. O sacristão Theotónio, o padre Pimentel, Afonso de Albuquerque na biblioteca portuguesa, são guardiães de uma época desaparecida, cujos mortos permanecem ali até que o tempo da maturidade discursiva chegue para os poder ressuscitar. No fundo, é a afirmação das suas mortes que possibilitará o recomeço do diálogo:
Vasco da Gama is a small town in the state of Goa, an exceptionally ugly, dark town with cows wandering about the streets and poor people wearing Western clothes, an inheritance of the Portuguese period; […] Beggars abound, but there are no temples or sacred places here, and the beggars don’t beg in the name of Vishnù, nor lavish benedictions and religious formulas on you: they are taciturn and dazed, as if dead. (62-63)
O visitante estrangeiro revela uma opinião exterior a este mundo. Apesar de mais uma vez transmitir o impacto inicial de distanciamento em relação àquele ambiente, a sua perspicácia revela uma experiência colonial presente nas ruas abandonadas pelo Ocidente — herdeiras de um passado remoto ali deixado e desesperançado — para o qual não há futuro, como o afirma Afonso de Albuquerque ou também o afirmarão D. Marcelina e Sal, personagens de Um Estranho em Goa.
Os percursos narrativos dos protagonistas-autores de Tabucchi e de Agualusa partilham a curiosidade, a preferência pela noite como tempo de viagem e de escrita, a inquietação e o desconforto no ambiente natural, mas diferem no ponto de partida do diálogo que encetam com a Índia. Tabucchi começa a viagem em Bombaim e só chega a Goa no sétimo capítulo, quase no final da narrativa. Agualusa assenta praça em Goa, porque quem ele procura em si é o homem lusófono, português de nacionalidade e angolano por naturalidade, mas também cidadão do mundo.
Num esforço conseguido pela justaposição de referências intertextuais, o narrador-autor de Agualusa abre caminho num processo de escrita muito questionador, com início nos seus fios interiores de memórias a cruzarem a América do Sul, a África e a Índia. A verdade absoluta já não existe nesta narrativa pós-colonial de final e início de século, restando assim as verdades mistas a serem perseguidas:
No meu conto, Plácido Domingo, um velho de pele dourada, seco, gestos demorados, a fala antiga e cerimoniosa do século XIX, vive em Corumbá, pequena cidade nas margens do Rio Paraguai, junto à fronteira com a Bolívia. Nessa altura, é claro, eu já sabia que Plácido Domingo se havia escondido em Goa. (15)
Plácido Domingo, uma personagem que se define pelo seu discurso, desempenha a função de uma segunda consciência amadurecida. Ele vive no esquecimento dos homens, no outro lado da morte, mas ainda assim precisa de se contar para que a sua vida pareça ter sentido (19). Trata-se da personagem mais complexa desta narrativa, não pela sua identidade, mas pelos espaços onde circula. São estes que o definem como homem. Tal como o Rouxinol de Tabucchi, ele é uma ave com voz interrompida — um papagaio de papel — a quem a Revolução Democrática cortou o cordel no dia 25 de Abril de 1974. Faz parte da multidão de desencontrados com o tempo, para quem no dia seguinte a pátria deixara de existir, “tudo deixara de existir e [ele] era realmente um terrorista” (19).
A imagem do calmo Plácido Domingo como ave propensa ao voo, sem fronteiras, vai perdurar pela narrativa fragmentária de Agualusa. É o discurso do ex-comandante Maciel que motivará o narrador-autor para momentos de total encantamento. Até porque ao ancião a sua experiência de vida confere-lhe um lugar de destaque no contexto cultural africano de onde ambos vêm, Plácido e o narrador-autor. Através da sua conversa, o velho revela a sageza e um discurso reflexivo fundamental na prossecução do diálogo lusófono. A sua fala desafia algumas verdades estabelecidas nos anos 90 do século passado, enquanto a Europa se encontra excessivamente centrada no seu projeto de sucesso. E este homem vem dizer em português que os portugueses sempre optaram por não ser europeus, que a sua identidades está no diálogo com a Ásia, a África e a América (51).
E vem ainda afirmar que essa opção portuguesa gerou homens como ele, homens de todos os lados (69), com uma consciência tão desenvolvida que lhes é permitido criar do nada em sólos vários. Um tal poder confere-lhe[s] características próprias do diabo:
— Escrevo. Estou a escrever uma biografia do Diabo.
— Como?
Percebi que a minha surpresa lhe agradava.
[…]— Ou talvez eu deva dizer uma autobiografia. O Diabo sou eu, o Diabo somos todos nós, não é verdade? (51)
A questão desenvolve-se à volta da procura da identidade de um “nós”. No momento de interlocução entre o velho e o jovem, estão dois criadores perspicazes e sensíveis que se entendem sem terem de verbalizar que “Nós” serão esses seres humanos, os que voam em aviões, e não só.
Lili é outra personagem fundamental na tessitura do encontro do narrador com Plácido Domingo. Ela é a guardiã de um espaço de fronteira, não só porque o seu corpo serve de introdução à essência que é Plácido Domingo, mas também, porque tem a capacidade de cifrar marcas do tempo. A sua profissão de restauradora de livros antigos, a sua vocação para o desenho como forma de comunicação, a sua sensualidade sem fronteiras de valor moral, situam-na no campo dos seres de um entrelugar, entre o humano e o divino. A sua própria pele incorpora o desenho da Constelação de Draco, a porta para a eternidade segundo os antigos: “Viam-se distintamente treze pequenos sinais negros, dispostos entre os dois mamilos como as estrelas de Draco. Se lhe fotografassem o peito o negativo dessa imagem seria semelhante àquele céu” (45). Essa constelação de sinais — em forma de papagaio de papel — é metáfora chave de Plácido Domingo. De modo que no corpo de Lili estão representados o voo e a anulação de fronteiras terrestres em vista de um diálogo futuro.
Lili pertence ao grupo de personagens com aspeto durativo, que não se definem como seres do ser, mas sim como criaturas do estar. São personagens, cujas ações determinam as suas respetivas identidades, pelo que precisam de agir para serem. Definem-se pelo seu comportamento sensual, não lhes interessando o investimento espiritual. Estas personagens não ganham o estatuto de Plácido Domingo ou o do protagonista de Tabucchi, mas também não se perdem nos lugares, porque sempre estão em con[tato]. Lili é a personagem que incarna um lado encarnado, passional da vida. É uma mulher próxima da natureza. Isto é, molha-se à chuva, passeia com os cães, observa o ambiente e o sári que usa permite-lhe flutuar na sociedade indiana, onde se movimenta sem peia alguma. A camoniana K é outra figura que, por aparente coincidência, se intromete na narrativa de Agualusa. A sua beleza exótica sugere ao narrador a recordação da Bárbara camoniana. No entanto, a serena presença que a tormenta amansa da bela negra K apenas o é na aparência. K acaba por se revelar um misto de mulher-criança sedutoramente mal comportada, ora batendo palmas como uma criança, ora mostrando o seu sarcasmo de uma forma muito adulta. A espécie de ninfa sensual e fingida que ela é aproxima-a da natureza caprichosa
. De África herdou o à vontade com o corpo, um fascínio para o narrador: “O corpo dela confundia-se com a água. Quero dizer, era igualmente cálido e suave, igualmente impossível de aprisionar” (147).
A recriação pós-moderna que representa K — resultante de fragmentos camonianos por um lado, e atuais por outro — reenvia o leitor para textos que testemunham o início do diálogo luso-asiático em português. No canto IX d’Os Lusíadas, o episódio “Ilha dos Amores” surge como proposta de coroação dos navegadores portugueses em torna viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia no final do século XV. Aquele é um momento pleno de tensão dramática, dir-se-ia mesmo violenta, porquanto formas de vida aparentemente diferenciadas — macho e fêmea — são propositadamente postas em cena para se conjugarem ao serviço de um bem comum patriótico e superior. A prestação de um serviço sexual pelas ninfas da Ilha dos Amores é decidida por Vénus e por seu filho Cupido, deuses mitológicos do amor carnal. Segundo o narrador, o jogo da perseguição sensual cifra-se por um balanço positivo, uma vez que no que diz respeito aos prazeres inflamados, “Melhor é experimentá-lo que julgá-lo/ Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo” (canto IX- 83). São de Vénus as seguintes ordens: “No mesmo mar, que sempre temeroso/Lhe foi, quero que sejam repousados,/Tomando aquele prémio e doce glória/Do trabalho, que faz clara a memória” (canto IX-39).
Então, obedecendo a uma vontade divina, a natureza aperalta-se para entreter os argonautas lusos. A flora e a fauna da ilha paradisíaca desdobram-se em encantamentos, ao mesmo tempo que formosas ninfas se predispõem ao jogo da sedução física, através da metáfora da caça; elas são as presas, eles são o caçador ou o predador, com exceção do jovem marinheiro Leonardo. Ou talvez sejam os marinheiros que ficam prisioneiros da coisa desejada!: “Uas fingindo menos estimar/A vergonha que a força, se lançavam/ Nuas por entre o mato, aos olhos dando/O que às mãos cobiçosas vão negando;” (canto IX-72).
Vénus apresenta a ilha como um paraíso verdejante com cursos de água doce em abundância e rica em pomos perfumados de cores e formas que sugerem duas características femininas, a voluptuosidade e a fecundidade. É, pois, a mulher renascentista que é posta em relevo: os cabelos ruivos da cor da laranja; os seios jovens com a forma e o perfume dos limões; os lábios rubros como a romã; os braços, como os ramos ondulados do ulmeiro. Sendo ainda ressaltada a fecundidade sujeita da pereira e da videira: “Entregai-vos ao dano que co’s bicos/Em vós fazem os pássaros inicos” (canto IX-59). O convívio social entre marinheiros e natureza desenrolar-se-á sem que a função do livre arbítrio tome parte. A natureza, que dá forma, também orienta as ações das personagens, num tom épico de sentido inquestionável.
Um segundo texto que mostra a prossecução do projecto luso-asiático nos anos posteriores e próximos do poema camoniano é a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, publicada em 1614, vinte e um anos após a morte do seu autor. Do ponto de vista histórico, o protagonista desta autobiografia terá mesmo viajado na companhia de um filho de Vasco da Gama. Luís de Camões publicara Os Lusíadas em 1572, daí que os autores, os textos e os cenários geográficos coincidam em termos temporais. No que diferem os pontos de vista dos narradores é uma questão que enriquece a reflexão acerca destes dois textos.
A narrativa autobiográfica de Mendes Pinto apresenta-se como um testemunho desprovido de intenções políticas. O autor oferece esta obra de maturidade aos seus filhos, afirmando que lhes quer contar os insucessos “da [sua] primeira idade, & continuados pella mayor parte, & melhor tempo da [sua] vida” (13). De modo que, o leitor é envolvido numa narrativa centrada no Oriente, em estilo coloquial e rica em pormenores descritivos.
A obra de Mendes Pinto está semeado de verbos de movimento e de advérbios de tempo, a par de uma intenção explicativa que transmite muita informação. O resultado é um texto tecido de uma multiplicidade de episódios circunstanciais. Neste sentido, a escrita é transparente, na medida em que pinta os factos e os ambientes e fornece o máximo de informação. Às vezes o texto atinge exageros de números e de realidades ou apresenta cortes da censura. No entanto, nesta narrativa é sempre ressaltada a rede de comunicação que os portugueses já teriam criado entre os vários portos de passagem ou de fixação, numa tripla estratégia de ordem militar, comercial e religiosa. Trata-se de uma rede flexível, com traços de fragilidade numérica e material, mas resiliente. O nosso protagonista que, amiúde, se auto-intitula “o pobre de mim”, é um ótimo exemplo dessa resiliência lusa em terras do Oriente. Umas vezes foi escravo, outras, simples marinheiro, e ainda noutras circunstâncias foi detentor de uma farta fortuna. Esta rede parece manter-se através das relações pessoais e interpessoais entre portugueses, entre portugueses e outros europeus, ou entre portugueses e diversos estratos sociais das sociedades aonde chegavam os viajantes lusos: homens e mulheres de poder, aldeãos pobres, clérigos católicos ou de outras religiões ou seitas foram chamados ao diálogo.
Um argumento estratégico para a flexibilidade da empresa portuguesa reside no facto do discurso de apresentação se basear numa ideia de futuro não temporal, do que decorrem duas das suas características. A violência com que viajantes portugueses podiam ser rejeitados nos sítios por onde passavam era a mesma com que tratavam os fragilizados ou os seus compatriotas de quem discordavam. A fé no seu Deus, é então o recurso e o amparo perante a fome, a miséria, a doença, a estranheza dos costumes, a violência recebida ou exercida sobre o outro, ou mesmo os temporais.
O discurso da Peregrinação é o de alguém em sintonia com os seus companheiros de viagem. De modo que o leitor assume este texto como um importante contributo para o conhecimento da estratégia imperial portuguesa. À luz dos anos que já passaram, é expectável que se discorde das opções humanas de um tal projeto.
Outro aspeto pertinente no testemunho de Mendes Pinto é o reforço da relação luso-asiática como uma cultura dos sentidos. E as referências textuais surgem em grande número: as descrições da flora oriental e dos produtos comercializados, com especial destaque para as especiarias; a atenção ao detalhe na exposição de matéria orgânica em estado de putrefação durante as cerimónias públicas; o registo do tratamento prestado aos enfermos ou a referência à decadência do corpo doente; a atenção ao caráter hipersensual de determinadas personagens secundárias, e o relevo dado a esta característica no caso do galego sensual chamado Diogo Soarez. Este último apresenta-se como um episódio curioso, porquanto é retomado em diversos pontos da narrativa. O narrador-autor parece obcecado por este caso de um europeu que tomou uma mulher à força, matou o noivo, destruiu a honra de uma família; e que apesar de tudo não parece merecer a condenação do nosso protagonista, uma vez que defende as qualidades de homem bom, pai, crente no Deus cristão e arrependido na hora da morte. A narrativa chega mesmo a enfatizar o caráter de sacrifício pela morte de um homem bom que mais não fizera do que corresponder à sua natureza sensual!
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Irene de Amaral University of Massachusetts Dartmouth