A Minha Ilha É Outra Ilha
Nuno A. Vieira
Estava-se no princípio da década dos anos 70 e andava eu em Boston a estudar para um Mestrado em Estudos Bilingues. As leituras de uma das cadeiras frisavam o facto de emigrantes, de diversos países, sofrerem um choque cultural quando, ao fim de muitos anos, regressavam á terra das suas origens e a encontravam bastante diferente daquela que haviam deixado. – Muitas das pessoas conhecidas haviam desaparecido, o progresso havia transformado a freguesia, e vivia-se uma outra vida. Era-se um estrangeiro no seu próprio país. Estava-se deslocado.
Pessoalmente, já não ia às Flores há um quarto de século. Nos últimos quarenta e um anos, tinha visitado a ilha duas vezes, em dois fins-de-semana em que a chuva me proibiu passear. Era como se não visitasse a minha terra há quatro décadas. O verão passado, regressei por cinco dias. Consolei os olhos e o espírito. Prometi voltar mais vezes. Vi muito, mas não vi tudo. Nada me chocou, mas fiquei agradável e alegremente surpreendido com o progresso da ilha e a qualidade de vida da sua gente. A circunstância de ter assistido à Festa do Senhor Santo Cristo, na minha freguesia, a Fazenda das Lajes, também foi um pormenor que me tocou a sensibilidade. Aqui, apercebi-me, de imediato, do cosmopolitismo da freguesia e da ilha – vi Fazendenses residentes no Canadá, América, Continente português, e demais ilhas dos Açores.
A ilha está linda e os seus habitantes e governantes evidenciam, em preto e branco, a qualidade que desde há muito lhes é atribuída – inteligência. Cinco dias nas Flores, não me deu para ver e informar-me exaustivamente de todas as mudanças que hão ocorrido nos últimos quarenta anos nesta parcela ocidental da Europa, contudo registarei algumas das mais óbvias.
Para já, chega-se às Flores de avião, isento do balanço das lanchas e do cheiro da gasolina. Em Santa Cruz, será desnecessário procurar-se o restaurante do Sr.Vitorino América, como também nas Lajes já não se encontra a loja do Sr. João Germano de Deus em frente da casa do José da Teresa. As mudanças são enormes, ao ponto de muitos lugares se tornarem irreconhecíveis, como por exemplo o local da Ribeirinha, na Fazenda das Lajes – lugar onde nasci.
Rasgaram-se estradas novas, em múltiplas direcções, abriram-se agradáveis trilhos que permitem saudáveis circuitos e passeios, construíram-se e reconstruíram-se muitos edifícios públicos assim como casas de habitação. Criaram-se novas ruas. Os portos das Lajes e de Santa Cruz tomaram uma aparência e funcionalidade radicalmente diferentes. O espaço turístico aumentou consideravelmente com a construção de hotéis, pousadas, residências, apartamentos turísticos como os Apartamentos Rádio Naval, e a criação do turismo de aldeia, como é o caso da Cuada. Ao dispor to turista, já há também uma abundância de restaurantes, snack-bares, bares, e cafés. Pude verificar serviço dispensado com profissionalismo. Não me posso esquecer do restaurante Pôr-Do-Sol na Fajazinha, onde o cliente fica tão surpreendido com os sabores como com o ambiente – a decoração está muito a gosto. A existência de mapas e guias turísticos adequados também já não permitirão que o turista se perca, além de o orientarem para os pontos de maior interesse.
Em resumo, diria que a primeira impressão é uma de admiração perante a nova construção, a abertura de estradas principais e secundarias, a acessibilidade a diferentes lugares, trilhos, miradouros, áreas de piquenique, instalações sanitárias, ausência de gente e presença de carros, e o embelezamento de diferentes recintos. A sumptuosidade e beleza da ilha assombram-nos. O homem florentino, nestas últimas décadas, tem sabido complementar a magnificente obra do Criador. A minha ausência das Flores, por uma quarentena de anos, serviu-me para reafirmar conscientemente a sua singularidade e compreender o cantar da Natureza, feito por poetas, filhos da ilha – Roberto Mesquita, Alfredo Lewis, Pedro da Silveira, e Gabriela Silva.
Uma série de serviços, lançados nos anos da minha ausência da ilha, colocou-a na linha do progresso de todo e qualquer lugar civilizado. Sei que numa região tão pequena, tudo isso só pôde ser conseguido com o muito esforço, persistência, e inteligente coordenação dos presidentes da câmara e políticos locais, assim como a voz dos cidadãos. Esses serviços são inúmeros: polícia e bombeiros, bancos e caixas automáticas, melhoramento dos serviços de saúde, lares para a terceira idade, construção de escolas, ginásio, parques infantis, piscinas, biblioteca, museu e pólos museológicos, clubes informáticos, miradouros, minimercados, e serviço de transportes.
Parece-me que todo ou quase todo o cidadão florentino goza de uma casa confortável. A casinha foi substituída por um quarto de banho moderno e a lareira de lenha por um fogão. A dona de casa, de hoje, com certeza que julgaria impensável ter que cozer o pão de milho (o de trigo era para poucos) ou o bolo do tijolo para o consumo diário da sua casa.
A lavoura, outrora manual, agora é mecânica. O arado foi substituído pela máquina – o lavrador pelo condutor. A terra lavradia tornou-se terra de pastagem. Certos géneros alimentícios, outrora produzidos nas Flores, agora vêm de fora. A fruta até chega a vir da América do Sul. Está-se perante um abastecimento de alimentação inconcebível não há muitos anos.
Uma das consequências da diminuição da população foi a lógica concentração de serviços. Ao nível escolar, reduziram-se as escolas e este ano, pela primeira vez, ambos os concelhos da ilha ficarão servidos com todos os graus de escolaridade. Ao nível religioso, o serviço pastoral está nas mãos de três sacerdotes. Muitos ainda se lembram do tempo em que cada freguesia tinha um padre e um professor.
A sensibilidade das pessoas também há mudado em certas áreas. Por exemplo, o Lar tornou-se uma opção para a terceira idade. A casa funerária já é o lugar para o último adeus. Nesta ordem de ideias, também observei que os cemitérios, num tom menos fúnebre, vestiram-se de verde para receber os seus mortos.
O acesso à educação grátis, para todos, deu um passo gigantesco na formação geral do aluno. Passou-se da 4ª. classe antiga para o 12º. ano, o que representa o ensino secundário completo. Pelo que consegui apurar, a maioria dos florentinos, em idade escolar, sabe aproveitar esta oportunidade em favor da sua promoção pessoal. Finalmente, o ensino superior passou a ser prerrogativa de muitos. Encontrei-me com uma senhora que está acabando de formar o seu quinto filho. No tríduo da festa do Senhor Santo Cristo, informaram-me que o organista é médico e é um de três irmãos a estudar na universidade e que todos trabalham de verão, ao lado dos pais, na faina agrícola. Este estilo americano assinala uma diferença da época em que o estudante não fazia nada, além de registar a marca da garra forte e coordenada de quem se esforça para conseguir um objectivo.
O campo da publicidade é outra área onde a diferença é marcante. Creio que tanto o 25 de Abril como a expansão da educação contribuíram para esta explosão. Não ando a par de todas as publicações que os florentinos têm produzido nestes últimos anos, mas o que observo já é suficientemente volumoso. Vários autores têm escrito muito sobre a Ilha das Flor
es, sua história, costumes, e tradições. (Acabo de ler o livro “Espírito Santo em Festa”, de Aurélia e Manuel Fernandes, onde aprendi muito sobre um assunto do qual sabia pouco). Tem-se escrito prosa e poesia. Tem-se feito fotografia. Há escritores florentinos residentes dentro e fora da ilha. A obra de alguns é de projecção nacional e internacional. – Tudo isso seria tema para um artigo longo.
Em matéria de tecnologia, notei que o florentino acompanha o ritmo mundial. Se considerarmos que toda a criança portuguesa, do primeiro ano, já tem nas mãos um portátil, isso põe a criança florentina à frente da criança americana. Vi muita gente a usar telemóveis com diferentes níveis de sofisticação. Sei que a rede de internet já entrou em muitas casas. Na biblioteca de Santa Cruz, vi pessoas de todas as idades em frente do computador. Nas Lajes, dia após dia, vi os computadores do Centro Informático a serem utilizados. Tudo isso gratuitamente. O verão passado, quando viajei por varias cidades do Brasil e precisei de usar o computador, tive que pagar um tanto, por um dado período de tempo.
Não há pasmaceira nas Flores. O florentino não dorme, pelo contrário, vive a reputação que desde há muito goza – a de ser inteligente. O florentino, desde a sua pequena extensão de terra, estende os olhos sobre a vastidão do universo e actualiza-se sobre os diversos acontecimentos do teatro internacional. O florentino apresenta-se como uma pessoa informada e independente. Tem uma mente cosmopolita com os respectivos tons de multi-culturalismo e multilinguismo. Além da informação que adquire através dos meios de comunicação e das viagens que empreende, já vive, lado a lado, com emigrantes que voltaram á sua terra e com estrangeiros que se encantaram com a ilha. Todo este intercâmbio e a presença dos franceses na Base Francesa das Flores concorreram para uma expressão multi-linguística. Segundo me consta, há um considerável número de florentinos que fala francês e inglês. O regresso de jovens imigrantes, residentes no Canadá e América, assim como a CNN parece terem o seu impacto linguístico.
Nos tempos modernos vai-se à SPA para relaxar. (SPA, do Latim, “sanus per aquam”, saúde por meio da água). Um fim-de-semana numa boa SPA é bastante dispendioso. Dispendiosos ainda são os CD’s que se compram com o som das águas do mar, dos riachos, das ribeiras, dos ventos, e das aves. “As Flores” surge como uma ilha toda SPA na tranquilidade das suas sete lagoas, no correr voluptuoso das águas das suas ribeiras, no esconder das ondas do mar nos calhaus das suas rochas, nos mosteiros das suas montanhas, no aroma das suas flores e, sobretudo, no silêncio misterioso de muitas das suas localidades. Definir este silêncio é o que eu não sei fazer numa só palavra. Quando procuro a sua essência, encontro-me com um elenco de adjectivos que nem individual nem conjuntamente expressam a sua quididade: mágico, profundo, relaxante, aquiescente, inspirador, misterioso, interior, íntimo, ad infinitum.
Segundo a Lenda da Sereia, esta Ilha-toda-SPA, nas águas longínquas do ocidente europeu, no princípio, atraiu e deu felicidade à rapariga ruiva encontrada no mar da Ponta Ruiva. Hoje, imigrantes, açorianos, continentais, e europeus continuam a maravilhar-se com as belezas naturais de uma ilha que só sabe existir florida.
Imagens: Ilha das Flores,jul.2010,Lélia Nunes
XVª Festa do Emigrante,Vila das Lajes
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Sobre o autor Nuno A.Vieira
Natural da Ilha das Flores, Açores,1942. Estudou no Seminário de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira. Emigrou para os Estados Unidos em 1968. É Licenciado em Humanidades e Ciências Sociais pela Universidade de Massachusetts em Dartmouth e Mestre em Educação Bilingue (ensino do Inglês,Segunda Língua, no Boston State College.Diplomou-se, pelo Departamento de Educação de Boston, em Português, Espanhol, Latim, Inglês e Psicologia Escolar. Por 36 anos lecionou Espanhol, Latim e Português, no Liceu de Stoughton, na área de Boston. Há cerca de 20 anos é professor de Espanhol, Latim e Português em Universidades do estado e particulares,na área de Boston. Nos últimos anos, tem sido uma presença constante nos jornais Portuguese Times (New Bedford), A União (Terceira), Sol Português (Toronto), As Flores (Ilha das Flores) e na revista Atlântida com a publicação de inúmeros artigos.