Assim, aproveitarei o tempo que me resta para tentar responder a esta questão. No universo cultural do Ocidente, a modernidade foi uma grande conquista adquirida ao longo de quatro séculos. Na sequência de golpes infligidos já no século XIX, não faltaram no século XX ataques que minaram os alicerces dessa mesma modernidade. As críticas vieram sobretudo das artes e pautaram-se por um registo essencialmente negativo. Com efeito, elas apontam sobretudo a desorientação, a desintegração do familiar, a perda da ordem, a incoerência, a fragmentação, a despoetização, o niilismo, a ausência de sentido, o vazio, a alienação, entre outras facetas. A arte foi, aliás, ao longo do século XX, uma espécie de ponta do iceberg a indiciar que, no fundo, o Titanic da modernidade ia esbarrar contra escolhos perigosíssimos, fatais mesmo.
Terá então passado o prazo de validade do projecto da mesma modernidade? Uma análise atenta do que esse projecto engloba será fundamental para compreendermos o que foi posto em causa e terá gerado a sua crise, bem como o que dele continua ainda válido. Impõe-se, portanto, uma serena análise de conceitos e um não menos sereno olhar panorâmico, de modo a permitir-nos perspectivar as linhas de fundo e o rumo sugerido por pensadores que, alheios a modas e a rasgos publicitários, encaram com seriedade a reflexão sobre os fundamentos da ética, esse lugar onde assentam a política e o direito, de modo a podermos descortinar alguma luz na estrada, por vezes escura, onde todos caminhamos.
Ao usar o termo “modernidade”, refiro-me a uma mundividência, ou visão do mundo, que engloba um conjunto de crenças e valores (sem me ocupar de prioridades históricas no surgimento de cada um deles). Com efeito, a partir de determinada altura, nos finais do século XVIII, a modernidade aparece com manifestações diversas – sem sequer ser ainda reconhecida por esse nome – e em múltiplas formas no Ocidente, sobretudo na França, Alemanha e Inglaterra. É uma visão do mundo que se difunde, que galvaniza o Ocidente e vai mesmo para além dele, inspirando tanto a revolução francesa que acima de tudo é uma epopeia contra a antiga mundividência herdada do mundo medieval, como a criação dos Estados Unidos, que são, no fundo, a primeira grande tentativa de materialização da utopia europeia da modernidade, chamemos-lhe assim.
Postos estes prolegómenos, julgo chegado o momento de definir esse conceito fundamental. O melhor processo de uma aproximação do conteúdo implicado nele será identificarmos as crenças dominantes associadas à visão que se sobrepôs à mundividência medieval. Elas são:
1º – O universo é conhecível e o ser humano é senhor do seu uso
2º – Todos os seres humanos são livres e iguais em direitos
3º – O ser humano é perfectível
Anterior a esses axiomas, e servindo-lhes de suporte, embora eles sejam aceites como dados, está a convicção de que o mundo é bom. A razão passa a ser a linguagem-ponte que permitirá harmonizar aqueles entre si, os referidos postulados. Do primeiro, resulta toda a legitimidade da ciência, da tecnologia e da actividade económica. Não será necessário entrar aqui em pormenores de localização histórica, mas presumo pisar terreno seguro apontando para o protestantismo como uma das balizas mais fortes dessa viragem. Na ciência, como em tudo o mais, o critério fundamental de verdade vai fundamentar-se na experiência e na razão, já não nos princípios da autoridade e da fé ou da revelação. Do segundo axioma resulta a democracia, com os seus ideais de liberdade e igualdade em busca de harmonização, tão conflitivos entre si quanto fundamentais. Ao terceiro axioma está inerentemente associada a ideia de progresso e dela resultam todas as instituições destinadas a melhorar o ser humano e a torná-lo mais apto a usufruir dos bens viabilizados pelos axiomas anteriores. A educação, como meio de perfectibilização, enquadra-se neste conjunto. Como afirmei também, subjaz a este tripé – ciência/tecnologia, liberdade/igualdade e progresso – uma valoração ética fulcral ou nuclear: o mundo é bom. Não no sentido rousseauano, mas em contraposição à atitude da teologia cristã medieval que considerava o mundo um perigoso e maldito lugar de passagem para o Outro Mundo, o Bom, o Bendito.
Com a chamada pós-modernidade, o edifício da modernidade não se desmorona. Apenas nos apercebemos de que os seus alicerces têm limites. Mas será melhor irmos por partes, analisando um por um os axiomas da modernidade postos em causa pela pós-modernidade:
1º – Em termos fundamentais, não mudou a atitude geral sobre a ciência. Cada vez mais desmembrada em novas sub-áreas, ela prossegue a sua busca de respostas sobre a constituição do universo. O saber ou o desejo/necessidade de o alcançar continua a não ser negado. Por todo o lado poderíamos traduzir o discurso politico, desde o de Obama ao de qualquer ministro da Educação português, nesse conceito chave de Francis Bacon: “conhecer é poder”. Os países desenvolvidos não substituiram as suas crenças na ciência e na tecnologia; aperceberam-se simplesmente de que os recursos naturais têm limites e o seu uso pode levar ao abuso e redundar em prejuízo dos próprios interesses humanos. As legítimas preocupações com a poluição, a clonagem, a contaminação do ambiente (registe-se, por exemplo, a actual catástrofe no Golfo do México), as experiências com animais nos laboratórios, não constituem argumento contra a ciência e a tecnologia, mas obstáculos pontuais e levantam sérias questões sobre abusos.
Vejamos, porém, o que acontece em relação ao segundo axioma. A liberdade continua a ser um ideal que se quer intocável, e uma considerável falange da humanidade exige mais atenção dos poderes a esse outro ideal, o da igualdade. A democracia, por mais defeitos que lhe queiramos pôr, continua a ser um ideal a atingir-se e a nortear-nos. Como regime político, ela continua a não ser posta em causa e os arautos da pós-modernidade também não o têm feito. O que acontece actualmente é uma crescente tomada de consciência da dificuldade de harmonizar entre si os princípios de justiça e liberdade. Quer dizer, o segundo axioma continua intocável, embora hoje tenhamos uma visão muito menos naïve sobre as forças que interferem nos conflitos de harmonização. O século XX foi testemunha (e parece que o próximo milénio continuará a sê-lo também) de tragédias resultantes da prossecução desses dois princípios.
O terceiro axioma é, dos três, o que mais tem sido posto em causa, sem no entanto ter sido contradito ou sequer afectado nos seus reais fundamentos. Com efeito, se é verdade que a ideia de história em contínuo crescimento é hoje encarada como uma utopia, os movimentos feminista, gay, verde, anti-racista, anti-colonialista, e tantos outros, prosseguem na sua confiança quase ilimitada na possibilidade de progressivamente alcançarmos seus fins. A pós-modernidade tem entusiastas entre muitos membros desses grupos. A educação continua a ser um dos objectivos de todos os programas governamentais e não conheço pós-modernista que duvide da necessidade da sua existência. Pugnam, sim, por tipos de educação diferentes da institucional. Mas acreditam nela, no progresso e na perfectibilidade dos seres humanos.
Comunidades
04 set, 2010, 04:42
Açores, Portugal e a modernidade fugidia – ou a Europa como âncora Onésimo Teotónio Almeida (2/4)
Portas do Mar,Ponta Delgada,Ilha de São Miguel