Fernando Aires, em Forma de Cheiro ou de Nuvem
Teresa Martins Marques
Dir-se-ia que a figura tutelar de Antero o acompanha, desde sempre, no seu percurso escolar, na cidade de Ponta Delgada: é no Campo de S. Francisco que se situa a escola primária onde Fernando Aires aprende as primeiras letras. Frequenta o Liceu de Antero de Quental, onde mais tarde virá a ser professor, e com o nome do poeta das Odes Modernas será baptizado o Círculo Literário que viria a fundar, em finais dos anos 40, com Eduíno de Jesus, Fernando Lima, Jacinto Soares de Albergaria, ao qual, mais tarde, se juntariam Carlos Wallenstein e Pedro da Silveira, tendo como objectivo principal a divulgação do modernismo nos Açores. A obra de Antero está presente nas suas preocupações exegéticas, pelo menos desde 1961, e era com autêntica veneração que o víamos percorrer os lugares míticos do percurso anteriano, na cidade que foi berço de ambos. Homem de vasta cultura e penetrante inteligência, observador atento dos fenómenos político-culturais do seu tempo, leitor de clássicos e modernos, possuidor de um notável espírito crítico, aliado a uma rara sensibilidade, a uma fina ironia e a um discreto humor, por vezes contrastante com melancólica nostalgia, a personalidade literária de Fernando Aires revela-se num estilo inimitável, no qual a elegância da escrita é um dos traços que mais pertinentemente lhe foram apontados pela crítica.
Publicou dois volumes de contos: Histórias do Entardecer (1988) – ao qual foi atribuído o Prémio do Concurso Literário Açores/88; Memórias da Cidade Cercada (1995) e a novela A Ilha de Nunca Mais (2000). Apresentando um conseguido retrato da Geração de Cinquenta vivida em Coimbra, esta novela constitui uma valiosa contribuição documental relativamente a um espaço-tempo geográfico e cultural da Lusa Atenas. Nela perpassa a história literária e a história das ideias, assumidas como referências no discurso cultural dos protagonistas, desde Voltaire e a tolerância até ao spleen de Baudelaire, mas também de outros tão diversos entre si como Shakespeare e Kant, Marx, Daniel Guérin, Lukács e Sartre. Os jovens desta novela lêem Rimbaud e Jorge Amado, Eça e Antero, nas ilhas ou longe delas, tantas vezes ainda desconhecidas, mesmo depois de Raul Brandão as ter encontrado. Mas nem só de espírito vivem estes homens e mulheres que também ouvem na rádio as canções de Charles Trenet, enquanto se debatem com o amor que não é verbo intransitivo.
É sobretudo como memorialista de altíssima craveira que Fernando Aires se consagrará. Era Uma Vez o Tempo – Diário I (1988), Diário II (1991), Diário III (1993), Diário IV (1997), Diário V (1999) teve papel pioneiro dentro do género, na produção literária açoriana, conforme foi apontado por J. Almeida Pavão, no verbete que lhe consagra no 1º volume (1995) da Biblos-Enciclopédia Verbo das Literaturas Portuguesas. Assumindo uma forte componente autobiográfica, o Diário inscreve-se numa originalíssima zona de intersecção entre o discurso poético e a narrativa ficcional, por vezes com incursões no território da crítica literária.
Era uma vez o tempo em que eu ainda não conhecia esta prosa-poesia, estas palavras tão feitas de silêncios, esta luz tão cheia de penumbras. Era uma vez o tempo em que abri o Rio Atlântico de Onésimo, na crónica “O Museu da Paz” e na pág. 186 encontrei o Fernando Aires respirando o mar na Galera “onde a Ilha se perde e alcança. Por onde a Ilha se alarga até ser maior que o nosso tédio. Tudo tão íntimo, tão íntimo. Tão indefinivelmente insular». E a manhã da Caloura “tão estranha, quase sobrenatural – talvez o espírito de Deus a pairar sobre as águas”, entrou nos meus olhos, encantou-me, e não pude deixar de pensar que a beleza entornada em palavras ainda existe, que os livros ainda valem a pena, que a literatura ainda é uma forma de felicidade, quando os autores como Fernando Aires perseguem a escrita pura: «Gostaria de escrever algo de completamente diferente, um estilo de linguagem de uma simplicidade nunca vista, limitada às notas essenciais da música da alma. Sem adornos e sem efeitos “teatrais”. Sem gramática. Alguma coisa que viesse como uma respiração, um luminoso apelo tanto à sensibilidade dos poetas como à das pessoas simples da terra. Como se faz?» Assim mesmo: «Um dia daqueles que se arrastam pela grota acima como um pedregulho deste tamanho. O vento como uma incha de mar a fazer ranger portas e janelas, a vergar os ramos, a arrastar pelos ares gaivotas desamparadas. A sensação de me mover como um fantasma no vale dos mortos, um punho fechado no lugar do coração».
Ao todo, cinco linhas, isto é, a quinta-essência da concisão e, todavia, que riqueza de conteúdo! A primeira frase apela à memória mítica do leitor e eis diante dos nossos olhos um Sísifo arrastando a pedra dos dias condenado à rotina, ao marasmo de um difícil viver. As “gaivotas desamparadas” reforçam o abandono que o homem sente, e o vento que verga os ramos, arrasta as gaivotas, faz ranger portas e janelas, é vento e mais que vento. É desconforto que abala a segurança, é fantasma de morte obsidiante, é elemento que reforça a angústia – “um punho fechado no lugar do coração”. A poética diarística de Fernando Aires está aqui claramente enunciada. Uma escrita forte, e viçosa, ainda que muitas vezes melancólica: “Acabrunhado, não me seduz a escrita. Para além de um certo limite «negativo» não é provável acontecer a Arte. Para brotar viçosa e comunicativa, a Arte necessita estar-se vivo e senhor da errância e do espaço. Ser concha e cítara e orvalho fecundante (…)».
E aí vem José Cardoso Pires a fazer clamar De Profundis o Fernando Aires:
“Que é Isto que nos faz ser? Me faz saber que sou?, me mantém sendo? – durante muitos anos? E, todavia, esta fragilidade de mim, este Eu tão subitamente, tão facilmente abolido por um simples coágulo que por acaso se forma nas minhas veias? O Universo tão facilmente abolido por um simples grão de areia! Toda uma catedral de arte, de consciência pensante e comunicadora de pensamentos e sentimentos, subitamente anulada, varrida da face da Terra, como um pó insignificante por uma breve lufada de brisa…».
E aí vem Beethoven, que Fernando Aires, traz pela mão, para salvar o mundo com o coro da Nona Sinfonia que entra pelos olhos, que invade a alma de cheiros, e que se saboreia em sinestesia ruidosa de melros negros que não desistem de cantar. Foi esta música que ouvi na Caloura, na companhia do Fernando e da Linda, enquanto ele ajeitava umas folhas de trepadeira, nós ambas de cotovelos apoiados na varanda sobre o mar.
É aí, no concreto das folhas das árvores, da terra áspera, do cheiro que o vento traz do mar, que esta escrita encontra as raízes mais profundas. Tem razão José Leon Machado quando diz que “Fernando Aires não é um autor historicamente desenraizado (…) e “o eu estando sempre presente, não cai no egocentrismo revelado por exemplo no diário de Amiel. Em Fernando Aires, o eu enunciador representa a contingência de um ser no meio de outros milhões de seres”.
A escrita de Fernando Aires possui a sagesse da contenção, da medida certa que não transborda. Se Mestres aceita, eu inclinar-me-ia para o tom das brandonianas Memórias, sem lhes ficar atrás, e talvez não enjeitasse a herança de um José Gomes Ferreira que desejava redigir os textos “com uma caneta de névoas (…) donde escorregassem as palavras diáfanas e imprecisas dum estilo de espectros condigno com a fluidez do passado”.
Fernando Aires contou entre os seus Mestres a célebre avó Teresa – “Avó sabence!” ( Como eu beneficiei da vantagem de ter o nome da Avó!): “Avó Teresa se estivesse aqui connosco, faria, decerto, desta noite e deste lugar uma coisa má
gica – como acontecia quando eu era criança. Os judeus insistiram que era no Templo de Jerusalém que se devia adorar. Avó, não. Para ela qualquer lugar servia, desde que se viesse de coração contente e a concha das mãos cheia de esperança. Que segredo era o dela? – pergunto-me. Não sei. Talvez esse segredo estivesse na sua voz tranquila, no seu olhar manso e tão seguro. Por isso eu não duvidava que ela tivesse assistido, pessoalmente, à noite dos sinais e trilhado os caminhos e indagado directamente das pessoas daqueles tempos. E isto, esta minha convicção, fez da minha infância um lugar abundante de aromas e ternuras.”
Eis como Fernando Aires escreve Poesia e Verdade, sem nada ter de pedir a Göethe, porque tudo teve de sua avó Teresa – o tudo que cabe na palma da mão da ternura, o tudo que encerra o olhar suave, a mão que desliza no cabelo agitado pelo vento que sopra do mar. O tudo do tempo que passou, mas que ficou entornado em beleza de palavras semeadas por bons ventos e continua a polvilhar de aromas de infância as manhãs da Caloura:
“Logo de manhã cedo chamei pela Linda. Queria que viesse gozar os aromas do ar aqui do terraço voltado ao ilhéu – cheiros já semi-esquecidos, mistura de essências em que se notava o funcho, a madressilva, o pinho e a humidade das pedras onde cresce a erva moleirinha.”
O Fernando vem agora de mansinho, paira sobre o jardim “para não perturbar o sono dos gerânios e dos ibiscos” nessa Caloura, lugar mítico, onde ele está agora a sorrir-nos, em forma de cheiro ou de nuvem.
Nota: Refundição de dois textos de Teresa Martins Marques, Leituras Poliédricas, Lisboa, Universitária Editora, 2002, pp.288-295 e 430-431.
SOBRE TERESA MARTINS MARQUES:
Ensaísta,crítica literária e investigadora integrada no Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa onde se licenciou em Filologia Românica (1975) e obteve o mestrado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea (1992).
Teve a seu cargo a direcção da organização do Acervo literário de David Mourão- Ferreira, na Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1997 e 2004. Autor tema da sua tese de doutoramento na Universidade de Lisboa.
Teresa Martins Marques,uma das mais fecundas ensaístas da literatura portuguesa contemporânea, se destaca no Mundo das Letras por sua produção literária,pela seriedade e dedicação do trabalho de investigação realizado ao longo de sua carreira, ou melhor, da sua vida.