Pois é, pai. Aconteceu. O horror de perder-te aconteceu.
Esse temor assolava certas noites da minha infância, em que me encolhia debaixo da roupa tentando não pensar. A minha mente de criança era incapaz de conceber um mundo onde não estivesses.
Quando cresci, tornaste-te quase imortal. A tua enorme força, a tua verticalidade de árvore inabalável, a tua energia arrebatadora faziam-me achar que eras uma espécie rara, daquelas que não morrem.
Mas… De há um tempo para cá, aquele terror voltou a invadir-me as noites e já não bastava encolher-me debaixo dos lençóis para vê-lo desaparecer. A consciência da inevitabilidade acordava-me em suores gelados que me arrancavam do sono.
E aqui estou eu, finalmente a ganhar coragem para escrever aquilo que me gela por dentro e que não consigo dizer, porque a voz emudeceu.
Gostavas do que eu escrevia. Dizias sempre para me dedicar mais à escrita e as minhas inseguranças desapareciam naquele elogio vindo de ti. Mas depois novamente me retraía. Sabia que não pouparias os reparos só por ser tua filha.
E aqui estou eu, na sombra dos teus passos, a atrever-me na expressão escrita daquilo que senti quando partiste.
Tinha de fazê-lo. Era o mínimo que te devia, depois de tanto que me incentivaste.
Quebrei os medos e agarrei neste papel.
Além disso, o que iria fazer com tudo isto que sinto, já que a voz se me emudeceu?
“O avô está nas Urgências”- disse-me o Vasco.
E entre esta frase e o fim, o meu mundo ficou suspenso por um fio tão frágil, que eu senti que se iria quebrar a qualquer instante.
E foi aquele nó cá dentro. Um nó que me paralisou os sentidos e a razão.
Um telefonema, e o mundo a desabar sobre mim, num cataclismo inconcebível.
Depois, fui eu e o meu irmão, perdidos na partilha daquele horror. A noite a transformar-se num buraco negro. E a dor a aumentar, só de pensarmos que não podíamos guardá-la só para nós.
Minha mãe e minha irmã dormiam, na esperança de um amanhecer.
O resto já todos sabemos. Um sofrimento tão nosso a tornar-se inevitavelmente público, porque tem de ser.
Foi rápido demais, mas essa rapidez era-te devida. Mereceste-a. A dignidade por que sempre te debateste a acompanhar-te até ao fim.
E é isto, pai. Claro que tenho ainda muito a dizer-te. Sempre tive e tu sempre o soubeste.
Não vou agora falar do que representas para mim, da infância que tu e a mãe nos proporcionaram, das tantas memórias que vêm agora em catadupa. Agora não. Mais tarde…
Neste momento, fica apenas aqui, em suspenso, um pouco do muito que te devo. Porque acredita que precisei de arrancar, não sei bem de onde, a coragem de escrever o horror que sinto. Mas fica também aqui gravada a tranquilidade de que este foi o fim que sempre desejaste.
Do legado que nos deixas, do quanto nos amaste e nos ensinaste, também não vou falar agora. Não tenho força.
Só queria mesmo partilhar contigo a dor de perder-te, para que saibas o quanto te adoro!
Maria João M Ruivo A. Sousa
Novembro 2010
Crédito Foto: Acervo família Fernando Aires