No Jardim Semântico de Fernando Aires
Eduardo Bettencourt Pinto (*)
Convivi pouco com Fernando Aires. Na altura em que vivia em Ponta Delgada era amigo da Isabel, sua filha. Esta veio a casar-se mais tarde com o Chico, um amigo meu angolano.
Via-o passar de automóvel muito agarrado ao volante, o olhar atento ao tráfego, os cabelos de ancião cobertos de nuvens brancas. Logo desaparecia nas enviesadas ruas da cidade.
Já sentia Ponta Delgada como minha, por herança familiar e da memória. Também por todos os sentimentos nobres que assaltam o coração, em termos de afecto e transcendência.
Depois foi a vida, as asas de um avião e o vastíssimo território canadiano onde aportei sob o linfático desespero do apátrida. De batalha em batalha fui decifrando os códigos de uma outra realidade social. Capitulei por fim ao novo mundo quando este solo absorveu, com toda a sua generosidade, a brevíssima vida da minha filha Melissa e a do meu velho pai. Ficaram dele, aqui plantadas, uma macieira e uma camélia cuja presença deixou no quintal uma imensa e fresca sombra de esperança.
Ao cabo de longos anos acabei por fincar nesta terra a enferrujada espada dos meus combates mais íntimos. Dissipou-se assim a incendiária morbidez que arruinava o meu espírito.
Estava já neste lado do mundo quando começaram a aparecer os livros de Fernando Aires. Foi em 1988 que surgiu o seu livro de contos Histórias do Entardecer, na Colecção Gaivota da SREC. Seguiram-se Memórias da Cidade Cercada e A Ilha de Nunca Mais.
Foi no registo diarístico, porém, com o título genérico Era Uma Vez o Tempo que Fernando Aires fez cintilar a coroa da sua escrita. Por vezes plangente, arqueado sob o peso de um céu de penumbra e humidade, a ilha, nas suas páginas rasgadas, ganhou uma fulguração única nas Letras Açorianas.
Numa entrevista a José Leon Machado, A Criação Diarística em Fernando Aires, o autor adiantava as razões pelas quais se lançara à escrita de um diário:
“Com efeito, os cinquenta anos de idade coincidem, frequentemente, com uma crítica existencial. É a idade em que a gente se dá conta da vida a fugir. De repente, surge a convicção de que se está a entrar na velhice e é aterrador quando se pensa nisso a sério. A mocidade passou, começa a ameaça às coisas vitais que constituem a razão de viver: a saúde. A capacidade do amor plenamente sentido e partilhado. Os projectos de vida e de realização a longo prazo. Então a gente procura uma fenda na muralha – a escrita de um diário pode ser resposta a isto”.
Nas minhas céleres visitas a S. Miguel tive oportunidade de o conhecer melhor. Na altura já septuagenário, revelou-me logo uma particularidade muito vinculada à sua personalidade: Fernando Aires não transmitia a placidez de um ancião em paz com a sua idade. O seu espírito, inconformado e rebelde, envergava uma insolúvel e abrasada fulguração romântica.
Eu compreendia o seu drama, que é o de todos nós: o de ficarmos mais sós quando o mapa da idade nos mostra as nossas pegadas ao longo das inexoráveis areias do Tempo. O crepúsculo aproxima-se lentamente, a imensa noite. Em cada novo dia espera-nos um deserto no espelho, a cada movimento do rosto, a cada sinal da nossa complicada e fragilíssima vida. Sentimos que um estranho nos olha de muito longe, dentro dos nossos próprios olhos. Não temos o rosto que somos por dentro mas aquele que se apoderou de nós subtilmente, enquanto dormíamos na memória o sono do que éramos e já não podemos ser. A efemeridade, sendo a penumbra que habita a nossa sombra, torna-se então mais visível, mais palpável. Somos os protagonistas a sépia de um tempo que vai morrendo lentamente em cada passo do nosso destino humano.
Quem admira os diários de Miguel Torga e Vergílio Ferreira não pode deixar de ler os de Fernando Aires. Ele está todo lá, sentado no banco das suas contradições — factual, poético, humano, cercado pela ilha por onde viajou com a beleza fulgurante das suas palavras.
Lembro-me hoje do mar, de uma manhã cinzenta e prodigiosa enquanto dialogávamos sobre Eça de Queiroz. Ouvíamos Beethoven. No céu de Ponta Delgada as gaivotas, em círculo, pareciam um remoinho de luz. Alguns pedestres no passeio da Avenida. Austero e fecundo nas suas opiniões, místico e filosófico, Fernando Aires era um conversador nato, profícuo e inolvidável.
Quando saí do seu carro para me refugiar nas brancas paredes da cidade, senti-me com o dever de guardar aquele momento com a solenidade que lhe era devida. Aqui estou a fazê-lo hoje, devagar, tentando não me esquecer de nada.
(*) Texto publicado originalmente no Blog Palavras no Branco do escritor Eduardo Bettencourt Pinto.
http://eduardobpinto.wordpress.com/2010/11/15/no-jardim-semantico-de-fernando-aires
Crédito Imagem: Eduardo Bettencourt Pinto
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O escritor Eduardo Bettencourt Pinto nasceu em Gabela, Sul de Angola, em 1954,com ligações afetivas e familiares nos Açores. Viveu em vários países após 1975, residindo atualmente em Vancouver, Canadá.Escreve para publicações no Canadá, Estados Unidos, Portugal e Brasil. Publicou vários livros de poesia e ficção. Está representado em várias antologias, nos Estados Unidos, Reino Unido, Portugal e Brasil. Página do autor: http://www.eduardobpinto.com