Meu mui querido Amigo:
Fui sempre frontal contigo, tu bem sabes. E tu comigo. Nunca nos poupámos nada. Eu a chegar ao aeroporto de Ponta Delgada, estremunhado de uma curtíssima noite em voo e tu ali à espera, logo de madrugada, teimoso (grande marca tua, e teimávamos entre nós qual seria o mais teimoso), tu a levantares-te cedo a fim de me levares para o pequeno-almoço em tua casa, com a Linda, e a saudares-me mal eu atravessava o portão da alfândega: Ó diabo, estás a deixar-te engordar!
Pois é. Hoje já consigo falar assim. Ontem, com a tua filha Maria João, tive de passar o telefone à Leonor porque a voz se me embargou. O mesmo aconteceu quando liguei para um florista em Ponta Delgada a encomendar um vaso de flores simples, mas elegante – avisei bem -, como tu gostavas. De novo passei o telefone à Leonor. Mas ela também não aguentou e devolveu-mo. Tivemos que desligar e tentar mais tarde.
Agora decidi experimentar escrever-te.
Escrevo para te repreender. Adivinhas porquê? Não se faz isso que nos fizeste! Foste-te assim num instante, como sempre preferiste. Mas sem avisares ninguém. Eu sei. Eu entendo-te. Detestavas passar pelas humilhações de um corpo a definhar, dependente da Linda e dos teus filhos, dos e das enfermeiros/as. Pregaste-nos uma valente, conseguindo aquilo que todos nós gostaríamos de ter a sorte de nos acontecer: abalar sem prolongado sofrimento, sem teres de presenciar a desfiguração da tua imagem e incomodando o menos possível.
Ontem acordei muito cedo, talvez por causa do jet leg. Eram quatro da manhã. Uma espertina que me fez levantar da cama. Desci para a sala e fui (claro!) ao computador portátil porque a essa hora já deveria haver notícias de Portugal. E havia. Um amigo informava, numa linha apenas, despachada com urgência, que te tinhas ido embora para sempre. Assim sem mais. A mensagem chegara precisamente nove minutos antes. Quer dizer, entrou no meu computador e despertou-me mesmo.
A meio do dia daqui, já o Daniel de Sá me enviava um Post-Scriptum ao teu diário a imitar-te o estilo, um mimo de texto que tu assinarias de cruz como sendo teu. Coisa linda de se ler. O Eugénio Lisboa mandou logo para o Jornal de Letras um belíssimo escrito, desassombrado de alto a baixo afirmando aquilo que todos gostaríamos de declarar se tivésssemos a autoridade dessa figura grada das nossas letras e da nossa cultura. A Teresa Martins Marques alinhavou de imediato um texto, tecido de frases tuas e dela, que te põe nos cornos da lua. O Sérgio Nazar, do Brasil, o Miguel Moniz, o João de Melo, toda a gente veio, num repente, bater à porta da comunicação social e dizer: Ó gentes! Sabeis quem se foi embora e deixou as nossas letras bastante mais pobres e tristes?
Apanhaste-nos realmente de surpresa. Sabias que estávamos (e vamos continuar) a preparar uma presença tua na Ponta da (tua) Galera. Num belo recanto de onde se disfruta uma gostosa vista sobre o mar com Ponta Delgada ao fundo, onde algumas tardes se tornam um espanto de jogos de luz filtrada entre nuvens, com o sol a jogar às escondidas e a brincar às cores. Em mancha de vegetação à solta, como tu gostavas, vai emergir uma pedra tosca segurando um mosaico com um pequeno excerto do teu diário. Vai ficar ali frente ao mar, à mercê dos olhos de curiosos de letras.
Depois – também sabias – será um album fotográfico sobre a Caloura, essa mina de memórias que remontam a séculos e com muita família tua de permeio. Haverá imagens de antanho e outras de hoje, espraiando-se por páginas salpicadas de textos de Gaspar Frutuoso, Manuel Augusto de Amaral (poeta e teu tio, de quem tanto te orgulhavas), Armando Côrtes-Rodrigues, Tomás Vieira e, claro, teus – afinal a maioria, já que ninguém escreveu tanto e tão bem sobre a Caloura e a Galera. Lembras-te de como eu gozava contigo que, no teu diário, dos Açores só entravam Ponta Delgada e a Caloura? Nunca nem uma palavrinha sobre o intervalo entre ambas, como se te metesses por um túnel sempre que saías da tua amada cidade para ires desembarcar directamente no refúgio da tua Caloura/Galera. Estava tudo agendado para Junho próximo e o Tomás Vieira já tinha disponibilizado o seu magnífico Centro Cultural para a grande festa. Não sabias, porém, de uma surpresa: a reedição do teu diário completo, integrado numa colecção açoriana a ser lançada em editora do Continente. Agora chamo-me parvo por não to ter revelado a tempo. Ia lá alguém adivinhar que nos pregarias essa partida de partir assim só porque não querias andar aí com ar debilitado, a sofrer de fraquezas de memória, de excesso de rugas, de maleitas que acometem qualquer ser humanao quando chega a idade. Tiveste sempre esse sonho faustiano, acreditaste que a Fonte de Juventus existia e, quando te apercebeste de que ela era um mito, bateste com a porta. Não estavas para te arrastar por este mundo pelas mãos caridosas dos outros. Sempre gostaste de uma certa postura aristocrática. Tiveste-a. Fizeste aquilo que todos nós no fundo gostaríamos acontecesse connosco: gozar uma vida cheia, amar em pleno, saborear os prazeres e a beleza que o mundo nos proporciona e, quando tudo começa a desandar, simplesmente desaparecer.
Temos provas de que andavas a planear esta saída de ilusionista. Ela está aí na fotografia captada por um amigo meu, o João Carlos Tavares, luso-americano veraneante habitual no Pisão, logo ali ao lado da tua Caloura. Flagrou-te em Ponta Delgada há um mês e tantos. Caminhavas só, na Avenida Marginal. Estás de semblante acabrunhado, ar mesmo de quem matuta em algo muito sério. De facto, não parecem ser muito boas as ideias que te polvilhavam o cérebro nessa caminhada. Sabias que ia ser duro para ti e para nós deixares a tua querida família (o teu clã) e os teus amigos. No entanto, magicavas a sério um processo de te escapares sem ninguém dar por isso e, nesse passeio, já estavas a ensaiar o acto final.
O teu tempo acabou. Era uma vez ele. Mas deixaste-o todinho em letra de forma, numa escrita bela, cinzelada em toques de esteta que conversava com os deuses da arte nesse teu diário que ficará como registo singular nas letras nacionais.
Deixaste mais, mas isso pode ficar só para nós. Nas tuas casas de Ponta Delgada e da Caloura, que partilhaste tantas vezes comigo e com os meus, onde em prolongadíssimos serões conversámos, rimos em coro a ecoar pela noite dentro – a Leonor e os nossos mais os teus – a Linda, a Maria João, a Isabelinha, o Fernando e as respectivas proles – continuarás a respirar e a confundir-te com a aragem que perpassa de leve por entre aqueles teus incensos, os teus ibiscos, os teus metrosídoros desse teu templo de verde e de silêncio. O D. Fuas, o teu amigo milhafre, continuará a aparecer como se lá estivesses porque ele sabe que continuarás por ali por muito tempo. Aquelas árvores, aquelas plantas, aquelas flores vão continuar-te. Elas estão lá pela tua mão como as páginas do teu diário.
Deixa-me acrescentar um PS – Eu no íntimo reconheço que estou a querer enganar-me. A verdade é simples e dura: perdemos a tua companhia. Ponto final. Eu tinha este sentimento a esgaravatar-me por entre as linhas que teclo no computador, todavia o empurrão para vir confessá-lo chegou em e-mail do teu amigo e companheiro de geração, o Eduíno de Jesus. Arribou há pouco, direitinho de Lisboa, numa só linha, como poema saído do silo do seu silêncio: Queria que o Fernando Aires ainda estivesse vivo…
Por isso eu acabo abruptamente, acrescentando apenas: E eu também.
É isso. Só.
onésimo