Fernando Aires
A morte de Fernando Aires traz-me um sentimento de luto, uma perda a um tempo pessoal e familiar. Dizer que éramos bons amigos é talvez pouco. A nossa amizade era feita de cumplicidades afectuosas, interesses culturais comuns, boa disposição e algum sentido de tragédia sobre a contingência humana do mundo. Acontecia estarmos semanas e meses sem trocarmos notícias; quando nos reencontrávamos, tudo estava outra vez certo e exacto. Limitávamo-nos então a reatar a conversa onde a tínhamos interrompido: como se isso tivesse sido na véspera, na sua casa de Ponta Delgada ou na minha de Lisboa. As velhas amizades vêm de longe, do território afectivo da infância e da juventude, e duram uma vida inteira. São exactamente isso: um modo de continuarmos a conversa do dia anterior. Porque vai-se logo directo ao ponto, não são precisos protocolos. Era o que se passava entre mim e o Fernando. Conhecíamos e aceitávamos os limites recíprocos, de cada um. Os limites eram as nossas diferenças – de idade, de pensamento, de ideologia e até de religião. Eu não tinha a idade nem a sabedoria, nem a fé, nem a ideologia social e política deste meu amigo. Mas havia sempre entre nós uma reserva da honra que nos levava a tomar por outros caminhos ao menor prenúncio de discordência ou colisão. Tínhamos também cultos e ódios comuns. Sabíamos de cor as mais solenes patacoadas de algumas das excelsas criaturas do nosso querido Eça de Queirós. Como ele, tínhamos o Antero por santo. Amávamos a grande música (onde pontuava o génio inigualável de Beethoven); odiávamos a canalhice da gentinha reles, a avareza dos mesquinhos e a mediocridade córnea e sofrível dos invejosos – e detestávamos os frívolos, os tontos, os pilha-galinhas, os brutamontes.
Fernando Aires era um escritor frugal, criador de linguagens claras e melodiosas, homem da casa e da sua ilha. Deixou-nos textos de opinião e doutrina, livros de contos lisos e límpidos como água, uma novela (“A Ilha de Nunca Mais”, 2000) e um diário em vários volumes (“Era uma vez o tempo”, 1988-1999) que fará história entre a literatura do seu género no século XX português. Não se trata de um simples diário como tantos outros que há por aí; mas de uma morada do ser e da vida. Li-o com fervor, para ir à presença de tudo e todos os que o rodeavam: a ilha datada no centro do universo, a comovida casa da Galera sob os grandes metrosíderos, os netos e os filhos em volta, a Linda presente como o sol branco e diurno da casa, as estações do ano no jardim, o chão e a chuva com cheiro a erva, a paixão de existir paralelamente aos dias e às vozes amadas da família.
Além de escritor, Fernando Aires era um fidalgo de hoje e à moda antiga (como deviam ser os fidalgos de verdade). Um aristocrata com direito aos seus assomos de mau génio. Um galanteador poético, um esteta do belo feminino. Dizem que éramos parecidos, mas não nessa fidalguia, pobre de mim. Talvez o fôssemos mais por contraste (passe o paradoxo). Porque ele prevalecia sobre mim pelo seu lado patriarcal. Olhava-se para ele, e em tudo era naturalmente um senhor. Por isso mesmo, constituía uma honra para mim, aqui em minha casa, dar-lhe o chamado lugar de honra à mesa, o melhor assento na sala com vista sobre a cidade de Lisboa, o direito a ser servido primeiro do que todos nós. Eu era apenas o seu irmão mais novo e tinha contraído para com ele o enorme dever da gratidão. Esse o meu luto, a minha perda, portanto. A minha dívida, também. Sem Fernando Aires, o meu mundo ficou mais pequeno, menos mundo – e mais só.
João de Melo
(Lisboa, 28.Nov.2010)
Sobre o Autor João de Melo:
Açoriano, micaelense, nascido no Concelho do Nordeste, Achadinha,em 1949. É um dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea, destaca-se como ficcionista, ensaísta,investigador, crítico literário,poeta e cronista. Conselheiro dos Assuntos Culturais na Embaixada de Portugal em Madrid (2001-2010).
João de Melo iniciou a sua vida literária, em 1975, com o livro Histórias da Resistência. Foi com o romance Gente feliz com Lágrimas que se tornou mais conhecido pelas inúmeras premiações que o romance foi distinguido: “Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores”, “Prémio Eça de Queirós da Cidade de Lisboa”, “Prémio Cristóbal Colón das Cidades Capitais Ibero-Americanas”, “Prémio Fernando Namora” e “Prémio Antena 1 de Literatura” para o melhor livro do ano. Gente Feliz com Lágrimas, foi adaptado ao teatro, à televisão e ao cinema. Está traduzido na Espanha, França, Itália, Alemanha, Holanda, Bélgica, Estados Unidos, Áustria, Roménia e Bulgária.
Produção Literária mais recente: O Segredo das Ilhas (2000, viagens), Antologia do Conto Português (2002), As Coisas da Alma (conto, 2003), Uma antologia de dezoito dos seus contos foi publicada em Espanha com o título de Crónica del principio y del agua y otros relatos (2005). Mar de Madrid (romance, 2006) e ainda: A Nuvem no Olhar (antologia pessoal) e O Vinho (com desenhos de Paula Rego).
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