Vem da ILHA DE SÃO MIGUEL…
Lélia Pereira Nunes
Puxava a mala de cor laranja e nada discreta pelos corredores do aeroporto Congonhas de São Paulo em direção a saída. Ia sem graça e sem saber a quem me dirigir. Leonilda, diretora da Casa dos Açores de São Paulo e filha de açorianos de Santo Antonio (Capelas), toda gentil avisara que alguém iria me esperar.
Abri um sorriso e fui saindo numa vaga tranquilidade.
Meia dúzia de passos depois um simpático casal acenava, era a Cândida e o José Vicente, velhos conhecidos. Conheci-os como integrantes do Grupo de Folclore da Casa dos Açores. Por três dias, a Cândida e o Zé, foram incansáveis na aventura de me apresentarem uma São Paulo que guarda uma comunidade orgulhosa de sua origem e que reproduz em seu seio os valores culturais da sua terra insular – os Açores.
Gosto muito de estar em São Paulo. De caminhar por entre seus prédios modernos, imensos, verticalizados a conviverem com a arquitetura da beleza do passado, de linhas ecléticas que lembram a época cafeeira como o edifício do Banco do Brasil na rua da Quitanda e os palacetes da aristocracia urbana da avenida Paulista. Poesia do concreto, do negro asfalto e de gente de todas as caras. Tudo se funde em grande e contínuo movimento. Gosto de sentar no Mercado Público e comer pastel de bacalhau, de cruzar a avenida Ipiranga com a São João sentindo a força de SAMPA cantada por Caetano Veloso. São Paulo de dias e noites intensas, dos Jardins, da elegante Oscar Freire, do parque Ibirapuera. Cidade real, fabulosa, multicultural. “São,São Paulo” de Tom Zé que encanta e assusta por sua grandiosa selva de pedra.
“Non dvcor dvco” o lema inscrito no brasão da cidade que é a locomotiva do País e onde tudo acontece está bem de acordo com a alma paulicéia. Pois, é neste grande coração do País que vivem 12 milhões de paulistas, e desses, aproximadamente, 3 milhões são descendentes de portugueses. Onde vivem todos? Não sei responder. Mas, sei onde estão os açorianos. Fui ao seu encontro na Zona Leste de São Paulo,uma região que não conhecia. Mais precisamente na Vila Carrão onde está a Casa dos Açores de São Paulo. Ali, açorianos em sua maioria vindos da Ilha de São Miguel, entre os anos quarenta e sessenta do século passado, construíram seu território, tecendo uma rede de relações sociais e afetivas, cruzando histórias individuais e coletivas. Portugueses açorianos que nunca esqueceram sua origem e, orgulhosamente, preservam sua memória da saudade, partilham uma herança cultural comum que se mantém fortalecendo os sentidos de pertença, a força da identidade. A alma insular se revela nos valores e tradições que o emigrante transportou e foi transmitindo aos seus descendentes brasileiros dando conta da riqueza que encerra a diáspora cultural.
Na Vila Carrão, estas tradições estão muito vívidas e fazem parte de seu cotidiano como raíz encravada na terra que floresceu e gerou bons frutos. Por toda parte encontra-se uma família açoriana que cultua o Espírito Santo e o Senhor Santo Cristo dos Milagres. Ali,a própria Ilha de São Miguel é seu “registo” mais caro, o seu relicário sagrado que carregam no coração. São gente da Bretanha (Ajuda, Pilar), Remédios, Capelas, Santo António, Lombinha da Maia, Amoreiras, Lomba do Loução (Povoação), São Brás (Ribeira Grande),Vila Franca do Campo, Rabo de Peixe, Arrifes.
Depois de palestrar na sessão de abertura da IX Semana Cultural dos Açores participei do simpático convívio com os açorianos e seus familiares e aí pude compreender o sentimento de pertença, as mundividências de uma açorianidade sobrevivente na assombrosa São Paulo. Na intimidade da Casa dos Açores, em rituais comunitários, partilham histórias comuns e vivências, recordam usos e costumes do torrão natal – a Ilha que ficou para trás, no meio Atlântico.
Alguns nunca retornaram, como a Dona Hermínia que há mais de cinquenta anos deixou os Arrifes. Enquanto vai preparando a “malassada” conta-me do seu sonho de um dia voltar a pisar na sua freguesia. Seus olhinhos brilham quando lhe falo de como é bonito o seu Arrifes e quanto está desenvolvido. Quem sabe um dia toma coragem e volta aos Açores, a Ilha de São Miguel, aos Arrifes? É a esperança do regresso. A mesma esperança que move o seu Jeremias que em 1948 deixou a Lomba do Loução e nos poemas que escreve expressa o seu amor pelos Açores.
O meu encontro com os açorianos da Vila Carrão não se limitou ao serão na Casa dos Açores. No dia seguinte, tinha muito mais para ver e sentir. Afinal, o “pacote-convite” incluía uma aula aberta sobre o Imaginário Açoriano para os alunos do ensino médio do tradicional Colégio Santa Isabel, situado no bairro Santa Isabel, vizinho da Vila Carrão e parceiro da Semana Cultural Açoriana. O colégio com cerca de 1300 alunos do ensino médio e fundamental é de propriedade da família Caetano,portugueses do continente.
Seguia pelos corredores do colégio cheia de curiosidade para saber até que ponto um tema como “Mitos ,lendas e crenças açorianas” poderia interessar aos jovens estudantes da zona leste paulista. Pois, pelo visto tinham todos os motivos, além da vizinhança da comunidade açoriana e o trabalho de difusão cultural da professora Eliane e do Diretor Profº. Luiz Antônio Caetano.
Ao entrar no Ginásio de Esporte fiquei deliciosamente surpreendida com o clima de total envolvimento dos alunos e professores com a cultura açoriana. Afinal, era a herança dos avós da grande parte daqueles alunos cientes da sua origem ínsula. Percorri emocionada a bonita exposição sobre os Açores fruto de pesquisa escolar. As nove Ilhas estavam representadas em diferentes aspectos: históricos, geográficos, econômicos, sociais e culturais. No alto, tremulavam as bandeiras dos Açores e dos Municípios; muitas peças do artesanato e produtos regionais integravam cenários etnográficos sobre o cotidiano das freguesias, sobressaindo o quarto do Espírito Santo. Nas paredes, fixados inúmeros painéis fotográficos das maravilhas das Ilhas e a imagem do Senhor Santo Cristo. Nada foi esquecido, nem as fotos e documentos de família guardados e repassados de geração em geração. Testemunhos da história de seus mundos: o da terra distante e o de cá. No palco, um grupo de Foliões, vestidos a moda de São Miguel, faziam sua cantoria em louvor ao Espírito Santo. Cantigas ao desafio entoadas por açorianos micaelenses e por jovens brasileiros, a terceira geração, seus netos. Os foliões eram acompanhados em sua cantoria pelos alunos que repetiam em uníssono o refrão. “Vem da Ilha de São Miguel”.
Vieram mesmo!
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