Nativity by Federico Barocci
A longa história do Menino Pai
Na penumbra da noite
que tomba silenciosa e fria
sobre a terra fria
nesta penumbra
da noite que tomba
Era uma vez
na penumbra também
da noite que tombava
um barco que largava
largava e partia
do cais que era negro
negro
na Ilha das Pedras Negras
Um barco que largava
largava e partia
e um menino que fugia
dos braços da mãe
dos braços do pai
O menino fugia
e toda a gente via
as lágrimas nos olhos
da mãe que ficava
os soluços nos lábios
da mãe que ficava
toda a gente via
só o menino
não
O pai
era uma estátua de basalto
plantada nas pedras do cais
da Ilha das Pedras Negras
(o coração do pai
ninguém o via)
Na penumbra da noite
que tomba silenciosa e fria
sobre a terra fria
nesta penumbra da noite
que tomba
quantos barcos largaram
quantos barcos partiram
quantas mães ficaram
em terra a chorar
quantos pais ficaram
em terra a olhar
os barcos ao longe
mais e mais ao longe
levando meninos deles
em suas barrigas negras
Menino que
naquela noite se foi
Na penumbra da noite
que tomba silenciosa e fria
sobre a terra fria
nesta penumbra
da noite que tomba
Era uma vez
O menino se foi
se foi e se meteu
nas grandes voltas do mundo
e nunca mais se deu conta
dos anos que passaram
das coisas que aconteceram
das coisas que mudaram
da brancura até
que a cabeça lhe cobriu
das sombras até
que os olhos lhe sombrearam
do peso até
que nas pernas lhe pesou
da tremura até
que nas mãos lhe tremeu
E o menino se surpreendia
daquela saudade que sentia
da mãe que morria
do pai que envelhecia
na Ilha das Pedras Negras
Na penumbra da noite
que tomba silenciosa e fria
sobre a terra fria
nesta penumbra
da noite que tomba
O menino se tornou pai
e nunca mais se deu conta
de que seu menino crescia
e crescendo se faz homem
e homem feito se vai
é agora sua vez
E o menino-pai via
seu menino-filho ir
via-o ir e ficava
ficava de braços caídos
ficava de olhos espantados
ficava olhando ao longe
mais e mais ao longe
o barco novo que largava
largava e partia
do cais que era negro
Largava e partia
o barco novo levando
ο menino-filho no convés
olhos erguidos para o céu
pra uma estrela a brilhar
a estrela que era dele
só dele
de mais ninguém
a sua estrela a brilhar
muito para além da proa
muito para além dos mastros
E o menino-pai
crucificado no madeiro da saudade
da mãe que morreu
do pai que envelhece
do menino-filho que se foi
no barco novo embarcado
não é
uma estátua de basalto
E sabe
agora
o menino-pai-velho-e-triste
sabe agora que
nunca nenhum homem foi
estátua de basalto
na penumbra da noite
que tomba silenciosa e fria
sobre a terra fria
Dias de Melo, Na Noite Silenciosa,
2ª ed., Veraçor, Ponta Delgada, 2007.
José Dias de Melo (1925-2009) professor, romancista e poeta, natural da Calheta de Nesquim, ilha do Pico, teve residência permanente em Ponta Delgada, ilha de S. Miguel, onde faleceu.
Olegário Paz (netAntologia)