São Francisco de Assis (pintor Mário Cabral)
INCARNAÇÃO
O pai de Francisco punha-lhe o preço de tudo em cara. Era um homem muito rico, mas sem berço. É frequente este tipo de homem repetir que o dinheiro é o motor da História; todavia, no seu íntimo, sabem, melhor do que a maioria, que tal não é verdade. Os aristocratas apreciam o dinheiro porque permite o luxo – mas não toleram o cheiro forte do dinheiro novo. Os homens como o pai de Francisco, que nasceram nos últimos degraus da escada social e a subiram à custa do seu trabalho, tomam este sentimento como um insulto. Gera-se neles esta condição trágica: nunca serão aquilo para que trabalham, têm asco por aqueles que invejam. Sofrem. Quiseram ser amados e acabam risíveis. Ficam irascíveis. Supuseram que o Amor se compra, como outra coisa qualquer e são dignos de pena. Tornam-se arrogantes. Imaginam possível comprar a felicidade, os temerários. Convertem-se em cínicos. Quase sempre acabam avarentos, idólatras do fruto do seu trabalho, que é uma espécie de espelho da madrasta da Branca de Neve.
Os pais como os de Francisco são determinantes na formação moral dos seus filhos. Sabendo, desde muito cedo, que jamais serão recebidos nos salões dos palácios dos senhores que os tratam por amigos, usam seus próprios filhos como armas de arremesso, preparando- -os com as delicadezas dos fidalgos, rezando para que subam aos patamares sociais mais elevados. Com frequência, isto custa um altíssimo preço, que é o de criarem dentro de portas um verdadeiro inimigo: tais filhos aprendem com seus próprios pais a envergonharem-se deles, isto é, a mudança de classe social obriga a um ritual de sacrifício, a uma morte, no mínimo a uma metamorfose. O pai de Francisco colocou-o nesta linha de montagem. O tempo e o modo eram propícios, pois nas cidades italianas crescia com grande fulgor o capitalismo burguês que originou o Renascimento e, mais tarde, a Reforma.
O contraste entre o seu pai da terra e o Pai do Céu, que não poderia ser maior, foi fundamental na conversão de Francisco. Um, vendia futilidades corruptíveis, enquanto o Outro dava bens incorruptíveis. Ao despir-se, por completo, na praça pública, Francisco opta pelo Pai Celeste, recusando o património. Esta nudez continua a ser escandalosa, mesmo para os franciscanos. É infantil, praticamente uma loucura, é muito custoso aceitá-la, sem torneamentos de todo o género, a começar pelo metafórico. Na verdade, inesquecíveis seguidores do Povorello foram muito ricos e merecem os altares da santidade em que foram colocados, haja em vista Isabel da Hungria, Luís, rei de França, Isabel de Portugal… Dir-se-ia que o que interessa é a atitude da alma face aos bens, e não os bens, em si. Parte do embaraço diante da nudez luminosa de Francisco deriva de toda a nudez parecer bárbara e grosseira, pouco maneirada. Porém, persiste o facto histórico do santo de Assis ter recusado a posse de forma explícita e nada simbólica. Esta radicalidade é incontornável. São Francisco de Assis elevou a Pobreza a um absoluto. Podemos não conseguir chegar ao extremo desta régua sem fazermos a apologia da riqueza, e sem pecarmos. Porém, trata-se duma analogia, e não duma metáfora. A posse contamina; a posse real, a posse material. Quem possui é possuído. Isabel da Hungria, Luís de França e Isabel de Portugal estiveram cientes desta verdade e manipularam as suas fortunas com o cuidado devido a quem transforma venenos em remédios. Francisco é um radical. Queremos cobri-lo com mantos. Deixêmo-lo nu, como veio ao mundo, para nossa salvação, por mais que custe.
Talvez o maior perigo desta nudez seja ver nela uma revolução social. Foi logo entendida assim, como, de resto, se passou, também, com Nosso Senhor. A Idade Média assistiu a intermináveis levantamentos populares, com base meia política, meia teológica, contra os desvarios de alguma Igreja, cúmplice do mundo dos homens, e não do Reino de Deus. Se o franciscanismo tivesse sido apenas isto, não sobraria nem sequer um frade no século XXI. Francisco é peremptório na imposição que faz de obediência à Santa Madre Igreja. Como é evidente – aliás, é aqui que nasce o equívoco – toda a crença tem consequências práticas e, estas, repercussões políticas. Os senhores deste mundo apanham um susto infinito com os franciscanos e, estes, são levados a assustá-los, por tabela. Mas a convocação franciscana nada tem a ver com o poder, outrossim com o Amor. De certo modo, Francisco tem a sorte de ter um pai terrestre avarento, o que acentua o contraste entre a família de sangue e a familiaridade espiritual.
Francisco quer ser amado; ou, melhor dito, Francisco pressente a emanação do Amor. Os instintos naturais do amor filial viram-se superlativos para o Altíssimo. Não deve saber – não sabe ainda aonde o vai levar este raio de luz transcendente que o chama através da Beleza do mundo criado. Abre as mãos porque tudo o que é verdadeiro é gratuito. Não quer nada para si, nem a si mesmo quer. Quer ser muito pequenino, de modo Àquele que o ama tanto o conseguir envolver num abraço. Quer ser o Menino de Deus. Ficou a fazer parte da essência franciscana esta paixão por Deus-Pai. O jeito ecuménico brota daqui; quase se poderia dizer que os franciscanos são os menos cristãos dos católicos. A criança que não tem pai na terra vai crescendo a descobrir o Pai do Alto, que é Pai de tudo e de todos. É sempre complicado falar da Trindade, pois quando julgamos abraçar uma das Pessoas, é a outra que está dentro das nossas mãos. Neste caso, Francisco tanto e tão bem amou o Omnipotente, que logo cedo o chamaram de “Alter Cristo”. Ser cristão, imitar Cristo, significa amar completamente o Pai de Cristo, ao estilo do Evangelho de São João, onde Nosso Senhor aparece na Sua feição mística completa. Há uma certa melancolia no quarto Evangelho; e há uma nostalgia em São Francisco de Assis que quase nunca se refere. É o “Não sei quê” do Espírito, a clara certeza de não pertencer a este mundo, sem se compreender porque se está aqui.
A perfeição desta imitação ficou assinalada pelos estigmas. Por isso, quando se cai na tentação de ver em Francisco uma espécie de hippy a cantar «If you go to San Francisco, don’t forget a flower in your hair» há que trazer ao espírito a dor total do Crucificado, oferecida no Montalverne. Francisco é um penitente. Despiu-se deste mundo, nem sequer um corpo quer que sirva a não ser para aliviar as dores do Incarnado. Não é que a alegria associada a São Francisco de Assis seja uma criação dos tempos modernos, que perderam a densidade do Sagrado; mas está longe daquilo que o próprio santo ensina ser a verdadeira alegria, identificada com a paciência diante do sofrimento e da injustiça. Como é que esta mesma pessoa canta o sublime Hino às Criaturas? Francisco já está no fim da vida quando o dita, atormentado com grandes sofrimentos nos olhos e nas chagas. A última estrofe é óbvia. Diz-se que, certa vez, em viagem pela Suíça, e diante de algo muito belo, Beethoven exclamou: «Quanto deve ter sofrido a alma que chegou a este nível de Beleza!». É quando a alma se desprende que consegue ver a Beleza; algo parecido sentem os doentes que pensam que vão morrer e, por analogia, aqueles que vão partir de vez da terra-natal. Aquilo que não é meu é que é belo. A posse das coisas retira-lhes a beleza, a utilidade vulgariza tudo. Voltamos a estar à frente da nudez perturbadora de Francisco: não quer nada, não tem nada, nem mesmo o corpo, que oferece para a morte de Nosso Senhor que, por Sua vez, oferecera em sacrifício ao Pai. À morte corporal
São Francisco chamará, também, irmã libertadora, luz anunciadora da Esperança.
Não há muitos homens iguais a este na história da Humanidade, quase desumanos no excesso para cima. Toda a gente o entendeu de imediato, na sua geração e, a seguir a terem rido do louco, começaram a respeitar a desmesura evidente da presença de Deus, aquele resplendor inegável da santidade, que atemoriza. Foi dos santos que mais rapidamente subiu aos altares na história da Santa Madre Igreja, por imperativo popular. Quem recusa deste modo completo aquilo que todos sentem que não é o fundo da humanidade, embora ocupe a grande parte das horas e dos dias, tem de representar a verdade do Homem. A nudez pode simbolizar a liberdade. A pobreza, também. Tem-se vontade de cobri-lo, como quem o protege, como quem se protege da exigência extrema que se antevê via dolorosa, insuportável, parto de nós próprios às mãos de nós próprios, Nicodemos a ser instruído pelo Senhor. O Crucificado visitou-nos de novo, o corpo de Francisco o confirma.
Foi este homem que lida com as espadas sagradas com o à-vontade dos possuídos quem inventou o presépio, quando já estava marcado pela morte. Persistia em querer ser o Menino de Deus. São Francisco de Assis nunca se expressou com facilidade; a poesia do seu estilo deriva da graça pueril de quem não domina a linguagem, algo muito comum nos grandes místicos, a começar em São João Evangelista, o que deve estar relacionado com a intimidade com o Mistério. Com efeito, o cume do espírito estilhaça o discurso gramatical, porque o homem já está a viver noutra dimensão, onde a lógica é a do corpo, não a do computador. O Verbo faz-Se carne. Incarna. Vive. Ora, quando um presépio é bem feito, ainda traz este perfume raro da tristeza magoada caldeada com a Esperança na Justiça e na Beleza; um fundo de graça infantil e de arte sem academia e profissionalismo, algo próximo dos rituais litúrgicos. Havia que materializar o teatro do mundo nas suas pregas, com uma simplicidade que não se confunde com reducionismo. Que aldeia é esta, a da epifania na terra ou aquilo que a alma antevê no Céu? Nós estamos ali. A Paixão explica-se por si, não carece de justificações. Nós sabemos que estamos ali. Nós sabemos que estamos ali em mais do que aquilo que sabemos de nós. Ali é o nosso futuro, como quem diz, a nossa completude. Seja como for, aquilo não é o mundo do pai de Francisco e dos gestores modernos, que estão mortos para a impressão estética e já não ouvem o apelo metafísico nem de trás nem da frente. Não sofreram o bastante para desejarem ressuscitar. Deste modo se entende que aquilo é a Vida. É a Carne.
É a Incarnação.
É a Incarnação.
É a Incarnação.
Dezembro de 2010
Mário T. Cabral é natural da ilha Terceira, Açores (1963), onde mora. Franciscano da Ordem Terceira, Doutor em Filosofia, poeta, romancista e pintor. O seu último livro – O Acidente – foi distinguido com o Prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2005/2006 (Porto: Campo das Letras). O seu primeiro livro publicado foi de crónicas – Histórias duma Terra Cristã (1996) – seguido de O Meu Livro de Receitas (Guimarães: Pedra Formosa, Poesia, 2000) e de O Livro das Configurações (Porto: Campo das Letras, Romance, 2001); o último é de filosofia e tem por título: Via Sapientiæ: da Filosofia à Santidade (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009).
Está traduzido em espanhol, inglês e letão. Os desenhos inclusos em Tratados pertencem a Eudemim: O Regresso ao Belo (Sinestesias) – exposição de 53 desenhos na Carmina Galeria, Terceira, em 2005. A sua última exposição foi de arte sacra e teve como título Gratia Plena (Convento de São Francisco, Lajes do Pico, 2008).