* Part 1 of 3 were published here on August, 2008
** “Sobre Adelaide de Freitas e o seu Sorriso por Dentro da Noite” by Vamberto Freitas was first published on this blog Comunidades on August 02, 2008. This month of February, Comunidades celebrates its third anniversary, and to commemorate this date we will be reviewing some original versions of texts published here in the last three years.
IB
*** Dr. Bobby J. Chamberlain, Diniz Borges and Katharine Baker are in the midst of translating Sorriso por Dentro da Noite into English.
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Poderá parecer estranho, à primeira vista, eu a escrever sobre o recente romance da minha própria mulher. Que pareça! Ela foi “autónoma” de mim durante quase toda a sua vida, e já era escritora antes de me conhecer, mesmo que na altura só tivesse publicado a sua tese de doutoramento, Moby Dick: A Ilha e o Mar/Metáforas do Carácter do Povo Americano. Mais do que falar sobre o romance em si próprio (muitíssimos outros o fizeram um pouco por toda a parte onde a literatura açoriana é lida e apreciada), quero dizer algo sobre a sua feitura durante alguns três anos, com trabalho incessante por vezes dia e noite. É claro que foi escrito quase todo antes do aneurisma que a atingiria de modo particularmente violento e deixando sequelas muito graves, tornando o seu título quase numa profecia da sua má sorte, isto é, da sorte da autora. Foi publicado em 2004, após a leitura do poeta e escritor nosso amigo Viale Moutinho (Porto), que o entregaria de imediato com uma forte recomendação de publicação à então recém fundada Editora Ausência, do Dr. Manuel Reis, em Vila Nova de Gaia. Quando recebemos Sorriso por Dentro da Noite[1] já em forma de livro pela primeira vez em Ponta Delgada, a nossa alegria foi a mais intensa, pois a sua apresentação ia além de todas as nossas expectativas. De capa verde-escuro, com o que parecem ser nuvens ameaçadoras por cima, duas hortênsias azuis a meio, no melhor formato clássico do romance moderno em Portugal, era agora só esperar pela sua distribuição e receber as primeiras reacções. Não tardaram em vir, ora ditas ao telefone ora escritas nas mais variadas publicações, no Continente, nas ilhas e na imprensa de língua portuguesa na América do Norte. Onésimo Almeida escreveu que era uma obra única na literatura portuguesa, particularmente pela sua temática: um mergulho sustentado durante duzentas e cinquenta e tal páginas na vida órfão de uma criança açoriana, aqui de nome Xana) algures no isolamento quase absoluto de uma freguesia das ilhas nos anos 50 e 60, os anos da nossa escuridão e sangria emigrante. É efectivamente um olhar diferente daqueles a que nos tínhamos habituado na literatura das ilhas.
A nossa e/imigração é agora vista não de lá para cá, mas do ponto de vista dos que ficaram e “viveram” a América através de “notícias” e “imagens” diversas trazidas ou enviadas de lá, através ainda dos relatos mais ou menos ficcionados dos que regressavam de férias ou supostamente definitivamente. Não poderia ser uma narrativa adentro da desde há muito ultrapassada tradição estritamente “realista”, mas sim um acto tão simbólico como simbólico seriam as linguagens das aventuras (re)contadas pelos que viviam ou tinham vivido essa “América” em directo. Xana não fala nunca directamente, é antes observada obsessivamente por uma irmã mais velha, que narra toda a estória de Sorriso por Dentro da Noite. O ponto de vista, uma vez mais, é simultaneamente o de uma criança com memórias desconexas mas de todo significantes, e principalmente do ponto de vista dessa narradora adulta e consciente de todo o drama vivido pela família emigrada e pelos outros que permaneceram nos Açores. Nesse processo de remorialiazação, não só acompanhamos a família paradigma-símbolo de toda uma comunidade isolada a meio Atlântico ou fixada nos Estados Unidos, como acontece a essencial “descrição” e “historicidade” de todo um povo com identidade muito própria. Adelaide corta aqui também radicalmente com praticamente toda a literatura açoriana da nossa geração, a que se aventurou na reinvenção literária dos nossos emigrantes: de meras caricaturas unidimensionalmente recriadas em muitas das nossas páginas romanescas e de poesia, a autora apresenta-nos seres humanos na sua totalidade, na sua mais profunda essencialidade, com alma, inteligência, alegrias, tristezas, tontices e astúcia. Quase não havia dor ou consciência da sua sorte nesses personagens tratados e vistos por outros, havia só roupa folclórica, linguagem despedaçada, certa cegueira ideológica ante o Novo Mundo e ante os que regressavam ou permaneciam na penumbra das suas margens imensas mas obscuras. Muito antes da publicação de Sorriso, eu já tinha escrito sobre essas visões de alguns autores açorianos, primeiro em recensões, e depois num ensaio apresentado num dos simpósios da Universidade dos Açores, com o título de “Imagens da América e dos Imigrantes: Um Duplo Olhar”. É claro que Adelaide neste seu romance não está tanto na companhia dos seus colegas escritores que nunca viveram a experiência imigrante na América, mas está sim com todos os escritores da Diáspora e luso-descendentes que necessariamente se ocuparam do mesmo tema, desde Onésimo Almeida em (Sapa)teia Americana a Katherine Vaz em Saudade e Frank X. Gaspar, principalmente em Leaving Pico (mas também em muita da sua poesia), ou ainda Francisco Cota Fagundes em Hard Nocks: An Azorean-American Odyssey e José Francisco Costa em muitos dos seus contos de Mar e Tudo. É claro que alguns destes nomes pertencem também (e de estatura quase canónica) à própria literatura açoriana contemporânea.
Para quem, como eu, leu praticamente toda a produção literária açoriana da sua geração e dos luso-descendentes, e sobre tudo isso muito reflectiu e escreveu, aconteceu-me algo de estranho durante a escrita de Sorriso por Dentro da Noite. Adelaide ia-me dando páginas para ler, eu fazia que lia, e logo as devolvia com um simples comentário: continua, Querida, que me parece muito bem! Tinha este medo: via-a trabalhar incessantemente no seu romance, tinha um receio muito fundo de lhe ter de dizer, ou que não estava bom, ou então ter de exercer não a intervenção de outro ficcionista, que não sou, mas tudo quanto me era teoria, desde técnicas gerais de narrativa à criação de personagens que fossem originais e memoráveis. Quando finalmente ela tinha já preparado todo o “manuscrito”, pensando que eu o conhecia de uma ponta à outra, entregou-mo e perguntou: agora como o publico? Num dos nossos encontros num simpósio anual da Madeira, tínhamos conhecido e feito amizade com Viale Moutinho, hoje jornalista do Diário de Notícias (Lisboa) aposentado, e que também já me conhecia de nome, desde os anos em que eu escrevia da América para o mesmo jornal. Sabia da sua integridade, da sua qualidade como escritor e poeta, e mais ainda sabia do seu conhecimento das nossas literaturas das ilhas (Madeira e Açores), sabia que ele seria absolutamente honesto. Enviei-lhe Sorriso por Dentro da Noite, com dois pedidos: lê e reage com toda a sinceridade, e se vires que vale a pena, ajuda-nos a encontrar um editor aí no Continente. Poucos dias depois, Viale reagia: sim, já o entreguei a uma nova editora, esse romance deve ser publicado já! Entretanto, a nossa amiga Katherine Vaz já tinha enviado da América à Adelaide doze páginas densas de apreciação e crítica. Eu tinha lido, e ficado quase paralisado com a sua contundência e admiração pelo Sorriso, dizendo inclusive (entre muitas outras coisas, que um dia tenciono publicar) que nunca tinha lido em língua nenhuma tão poderosa metaforização do sofrimento da mulher no período menstrual, e a consequente relação de amor e ódio com o seu próprio corpo, a luta ingrata contra a sua própria natureza! Adelaide já estava visivelmente muito doente. As nossas noites já raramente eram de “sorrisos”. Eu agora esperava o romance (que nunca tinha lido!) com toda a ansiedade de quem põe na literatura um dos mais queridos significados da sua vida. A neurologista da Adelaide em Lisboa tinha-me dito há poucos dias: é importante que o romance seja publicado o mais breve possível porque vai ajudar o seu ego e condição em geral; essa alegria faria parte da nossa terapia. Eu esperava ansiosamente pelo momento. Mas naturalmente também muito me preocupava com possíveis reacções daqueles que achariam ter contas a ajustar com ela, ou comigo, ou com nós os dois ao mesmo tempo. Tinha já decidido que leria tudo que fosse publicado sobre o Sorriso, e nalguns casos, se necessário fosse, esconderia tudo, pois Adelaide presta uma atenção muito selectiva à crítica literária em Portugal (lê principalmente o Mil Folhas do Público e o JL) assim como a certas publicações açorianas. Quando o romance finalmente saiu, uma das primeiras reacções, como aqui já referi, foi a de Onésimo, grande amigo a toda a prova, com uma honestidade absoluta: eu passava do Calvário para a Alegria. Onésimo nunca diria o que não sentisse ou soubesse. Após a sua reacção, pedi finalmente à Adelaide para que me deixasse só na nossa sala do Pópulo toda a noite, e abri o Sorriso! Não convoquei desta vez para minha companhia o nefasto JB. Comecei a ler a primeira linha ouvindo as Quatro Estações de Vivaldi. Tentei esquecer toda a teoria e crítica literária. Edmund Wilson lavava sempre as mãos antes de começar a escrever, num acto simbólico de bondade e justiça literárias. Eu nessa noite lavei a alma e a mente de tudo o que pensava sentir ou saber. Tinha presente que um dos primeiros sinais de que um livro merece a nossa atenção, é se queremos continuar ou não a virar páginas, expulsando por completo todo o restante mundo. Após o primeiro parágrafo de Sorriso, sabia que não o deixava mais. Mas não o li todo essa noite, não queria, tal o poder que exercia sobre mim. Pelo meio e sozinho enquanto Adelaide dormia tranquilamente no quarto ao lado, chorei lágrimas de alegria, orgulho, contentamento, amor. Acordei-a a certa altura para lhe dizer da minha gratidão. Exerci todo o meu humor: Sua filha-da-mãe, que me tinha roubado da gaveta o romance que eu tinha escrito, e o tinha publicado sem mais. Era agora o nosso livro! Creio que só nesse momento é que a Adelaide percebeu que eu lia o Sorriso pela primeira vez. Chegar ao fim de um romance com pena de não haver mais, é outro grande teste à sua beleza. E era isso que agora acontecia comigo, como a outros que iam reagindo de modos vários, por vezes quase euforicamente. Ia-lhes dizendo que me parecia mais um romance americano escrito em língua portuguesa. Lembrava-me aqui de como o nosso amigo e colega Eduardo Bettencourt Pinto dizia o mesmo da minha própria escrita crítica. No caso do Sorriso, era a fluidez da linguagem, a criação de personagens memoráveis, a poetização do negrume da vida e da dor, a celebração de se estar vivo na escuridão. Como se ama uma mulher e uma autora de mérito ao mesmo tempo? De modo esquizofrénico: com ternura e inveja, sobretudo com a humildade de crítico literário, a de quem poderá entender de mecanismos e protocolos da literatura, mas não a sabe fazer. […]
Vamberto Freitas nasceu na Terceira em 1951. É Professor de Língua Inglesa na Universidade dos Açores desde 1991, tendo publicado inúmeros estudos críticos e ensaios sobre as literaturas norte-americana e açoriana, neste momento preparando uma colectânea de ensaios sobre literatura luso-americana. Tem vários livros, entre os quais Jornal de Emigração (4 volumes) O Imaginário dos Escritores Açorianos e A Ilha em Frente: Textos do Cerco e da Fuga. Tem publicado algumas traduções, principalmente da poesia de Frank X. Gaspar e dalguma prosa de Katherine Vaz. C, intitulada O Outro Lado do Espelho: Imaginários Luso-Descendentes. Continua a colaborar em vários periódicos com textos de crítica literária e cultural.
Irene Maria F. Blayer
02-08-08
[1] Parte do capítulo “Life Changes” de um livro em preparação.