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Aqui é o outro extremo da praia de Copacabana.Para a direita, em continuação, vêem outras praias, sempre diante
do oceano. Há sítios lindíssimos, para longe, com pescadores muito rústicos, habitações extremamente pobres, em contraste com a riqueza do mar que se prolonga e da mata que começa.
E aí se vai dando a volta à cidade. Faz-se a curva por uma avenida talhada na rocha,
e o mar lá em baixo é um esplendor. Sobretudo ao anoitecer, antes de acender das luzes, vê-se por um mirante toda a vastidão de água de inúmeras cores, com aquelas sombras violentas, e aquele súbito verde que aparece só quando a onda se dobra! E a espuma abre em altos véus que atira às pedras negras e o céu vai desmaiando com estrelas brancas.
Tiveram a lembrança agradável de instalar a essa altura um recanto onde se pode tomar chá. Oh! tomar-se chá
vendo nascer a lual… (Como num poema chinês!)
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Por essa fotografia V. pode ver a orla marítima e os relevos extravagantes da cidade. O que a torna difícil é
justamente esta conformação, toda entremeada de grandes massas de pedra que separam os bairros, tornando o problema
das comunicações — principalmente agora — fatigante, demorado,insuportável.
Essas montanhas raramente são acessíveis. Umas são escalvadas, outras cobertas de vegetação densa, mas o clima
não permite excursões muito ousadas, e o alpinismo aqui não tem sentido. Por isso, o Corcovado e o Pão de Açúcar são
procurados com tanto interesse: são, na cidade, os dois únicos pontos a que as criaturas se podem transportar, a certa
altura, para ver o mundo um pouco de cima. O mundo, visto um pouco de cima, não é desinteressante. Até as criaturas
comuns, intuitivamente, sabem disso. Mas o que eu queria é que ele fosse maravilhoso, de PERTO.
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Aqui é a praia de Copacabana vista “por dentro” — embora no momento já esteja diferente com as construções de
dez andares comprimidas umas sobre as outras. O casario pequeno que se vê no primeiro plano edificado é hoje quase
inexistente. O arranha-céu vai dando cabo da casa, por toda parte. Não lhe pude arranjar uma vista mais recente; talvez
esta seja de uns 5 anos atrás. Aproveito o postal para contar-lhe que, dessa invasão do arranha-céu escapam apenas
alguns sítios considerados “turísticos”, entre os quais a zona em que agora moramos, onde não é permitido perturbar
a paisagem com esse tipo de construções.
Aqui em “Águas Férreas” (é o nome mais geral, seguindo-se o de “Cosme Velho” que é a via que o serve, e o de
“Laranjeiras”, que é denominação local, mais extensiva), as residências são quase todas antigas e senhoriais. Muitas,
em decadência absoluta, convertem-se em cortiços.
É tudo ainda mais ou menos como nas gravuras de Debret e Rugendas
— mata, palmeiras, pretos, riachos, roupa a secar nas cordas…
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Agora é a cidade vista do mar: como se estivesse desabitada,não vê? As águas sussurram nos penhascos que devem
ser da barra da Tijuca; o Pão de Açúcar avulta, visto de frente; e, no último plano, ã direita, perfila-se o Corcovado.
Por aquelas covas de verdura, imagine esta sua pobre amiga pensando nos mares longe…
Se algum dia V. vier até aqui (8) , e se vier pelo mar,terá uma visão inesquecível.
Tudo isso que aí vê é muito fantástico,sobretudo a certas horas, com certas cores.
Imagine,por essas madrugadas de névoas róseas e violáceas,todo esse mundo de granito despontando, vagaroso.
Esperase uma raça sobrehumana aparecendo depois, nesses lugares
incríveis…
Ai! — mas depois se descobrem, por entre muitos automóveis,
uns míseros bichinhos como eu…
Tudo pena, — mas veja: nem ouso aconcelhá -lho a vir!
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Nenhum dos postais anteriores trazia um pouco desta riqueza
que é agora o meu enamoramento: NUVENS!
Por que será que ando tão apaixonada por elas? Por que são água?
Ainda água? Pela sua fragilidade? Por que vão para longe?
Sob as nuvens está uma parte do centro da cidade, com os famosos Arcos que a princípio serviram para o transporte
de água do monte para a população localizada ã beiramar,e hoje se transformaram, de aqueduto, em viaduto, ligando
a parte plana aos morros de Santa Teresa, que vêm a ser parentes do Corcovado.
Embora assim fotogênico, esse bairro é muito feio, mal construído, misturado, com excesso de tráfego e comércio.
Mas no meio disso, há um telhado interessante, uma janela antiga, uma porta com azulejos, etc.
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E aqui, finalmente, a A. Rio Branco, a artéria principal (repare o estilo!!!) da cidade. Esse jardim pertence
ã praça Floriano, onde há uma estátua dessas que sempre erigem aos pobres marechais indefesos. Tanta gente puseram
pela pedestal acima que ao marechal, de espada desembainhada,atribuem a exclamação: “Aqui não sobe mais ninguém!”.
esquerda por baixo desses grandes edifícios, estão os principais cinemas da cidade, o que fez dar também ao sítio
o nome de “Cinelãndia”. A direita, o que não se vê, é a Biblioteca Nacional e, um pouco mais adiante, o Museu de Belas
Artes. Ao fundo, o Teatro Municipal.
Aqui se acaba a série de postais, com que lhe desejei oferecer uma excursão pela cidade, neste belo domingo de
sol e nuvens (dessas que põem tudo de repente obscuro e frio, e logo passam…).
Hoje abriu-se no jardim a primeira azaléia. Faz um tempo lindíssimo. Mas sentem-se as chuvas enormes que passaram,
e as que ainda estão suspensas.Diga-me que não lhe aborrecem tantas insignificãncias que lhe mando.
E como o postal ordena que termine, — ordens suas,talvez? — aqui lhe digo adeus, entre as nuvens e o sol.
Cecilia.
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Notas:
1.Cecília Meireles escreveu a primeira carta a Armando COrtes-Rodrigues, em meados de 1946, depois de entrar em contato
com o livro Cantares da Noite – seguidos dos poemas de “Orpheu”, publicado pelo poeta açoriano em 1942.
2. A últimmaa carta, manuscrita, foi redigida em um hospital de S. Paulo, em 3 de março de 1964: “(…) estes remédios de hoje (que são tão surpreendentes) me causaram uma pequena calcificação num pulmão — e devo operá-la no próximo dia
6.Essa é a minha história. Segundo o médico, devo voltar ao Rio antes do fim de março. De lá lhe escreverei mais e
melhor”. Cecilia Meireles morreu em 9 de novembro, daquele mesmo 1964.
3. A correspondência de Cecilia Meireles a Armando COrtes-Rodrigues, integrada ao espólio “Casa-Museu Dr. Armando
Cortes-Rodrigues”, encontra-se em fase de registro e ordenação pelo Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada, ilha
de S. Miguel, Açores.
4. Armando Cõrtes-Rodrigues (Vila Franca do Campo, 28-02-1891 — Ponta Delgada, 14-10-1971), entre 1910-1915, em Lisboa,
seguiu estudos universitários de Filologia Clássica. Integrou o grupo modernista “Orpheu” do qual participaram, entre
outros, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Ronald de Carvalho.
Completada a formação profissional, retornou ã sua ilha de S. Miguel. Além de professor de Língua Portuguesa, foi
poeta, teatrólogo, etnógrafo, cronista. “Poeta dos Simples,da Terra, da Água e do Sol” publicou os seguintes
livros: Em louvor na Humildade. Poemas da Terra e dos Pobres,1924; Cânticos das Fontes, sonetos, 1934; Cantares
da Noite – seguidos dos poemas de “Orpheu”, 1942; Horto -fechado e outros poemas, 1953, com o qual recebeu o prêmio
Antero de Quental, atribuído pelo Governo Português; Planície inquieta, póstumo, 1987. Em 1991, integrado nas Comemorações do Centenário, Canção da vida vivida, reunião de poemas inéditos, foi editado pelo Instituto Cultural de
Ponta Delgada, sob a responsabilidade do autor destas notas e de Bruno Tavares Carreiro.
5. 0s doze cartões postais encontram-se sob a guarda da família Bruno Tavares Carreiro — Ana Laura de Gusmão Rodrigues
Lopes da Silva Tavares Carreiro, ela sobrinha do poeta.
6. Evidente homenagem de respeito aos sentimentos do poeta de profunda vivência católica.
7. No livro de poemas Cântico das Fontes, Armando Cortes-Rodrigues exalta a Fraternidade, tal qual um São Francisco
transubstanciado nos elementos Terra e Agua. Na composição dos quatro sonetos “Em louvor da Água”, o Autor exercita a
fórmula “Louvado seja Deus por…” (tantas vezes utilizadas no decorrer da publicação), com o tema central perpassando
cada uma das estruturas poéticas:
a Água, “nossa irmã”.
Louvado seja Deus por ter criado
A água, nossa irmã, com tal ternura,
Pois não há mais alegre criatura
Nem mais palrerira em todo o povoado.
E que humildade a sua! Lã da altura
Daquela serra vem, passo apressado,
Sempre a descer, que é esse o seu cuidado,
A repartir a esmola da frescura.
Pressurosa lá vai a bom correr,
Por aqui, por ali, dando a beber
A terra já sedenta, que a chamou…
E queda-se nas fontes a cantar,
Como dizendo, ao ver alguém passar:
– Se tendes sede, irmão, aqui estou!
8.Armando Cõrtes-Rodrigues nunca esteve no Brasil. Cecilia
Meireles Visitou o Amigo em dezembro de 1951
Nota: Respeitou-se a ortografia original.