Do Bar Jade ao Grupo Balada
Vamberto Freitas
Creio que quase todas as gerações literárias têm um momento marcante no seu percurso, que poderá tomar várias formas: um colóquio, um ponto de encontro e convivência num café ou bar, uma polémica, ou até a publicação de um só livro. Na segunda metade do século passado, a dispersão açoriana por ilhas e continentes não permitia perpetuar a tradição, digamos, de um Chiado, ou sequer de um Bar Jade na baixa de Ponta Delgada (lembrado por Fernando Aires nalgumas páginas do seu Diário em cinco volumes), onde se reuniam alguns escritores e poetas dos anos 40, aparecendo o Eduíno de Jesus com os seus sapatos de lacinho e o Pedro da Silveira com a sua língua mais do que afiada e nem sempre justa. Foi nessa tertúlia que se deu o primeiro encontro açoriano alargado com o modernismo literário em língua portuguesa, especialmente o que chegava de Cabo Verde através de poetas e escritores como Jorge Barbosa, e do Brasil, especialmente o Brasil nordestino e de Manuel Bandeira. Escreve Urbano Bettencourt num ensaio a ser publicado brevemente pelo Boletim do Núcleo Cultural da Horta: “Entre o Bar Jade e o jornal A Ilha cabia, afinal, o mundo todo e arredores. Esta era talvez a melhor lição transmitida aos que vieram depois”.
Os que vieram depois foram muitos dos que se reuniriam na Maia (S. Miguel) entre 1988 e 1991 em três grandes e influentes encontros, com o imenso prazer e proveito de ainda terem tido como elementos activos entre eles Eduíno de Jesus e Rui-Guilherme de Morais, dois dos mais conhecidos nomes dos que aqui chamarei de Geração Jade. Por certo que alguns livros e mesmo revistas já tinham “reunido” muitos desta nova geração pós-anos 40, com destaque para A Questão da Literatura Açoriana (1983) de Onésimo T. Almeida, e A Memória da Água-Viva (1978-1980), a revista fundada e dirigida por Urbano Bettencourt e José Henrique Santos Barros. Significativamente, tanto num caso como no outro vinham estas manifestações “de fora”, dos EUA e de Lisboa, dos que já enxergavam muito mais mundo mas mantinham sempre as ilhas como geografia referencial e no centro da nossa criação artística e produção intelectual generalizada. O ritmo bastante acelerado da publicação de livros nos anos seguintes, mantendo-se até aos nossos dias, e o diálogo constante entre todos acabariam por firmar e afirmar os que, nas palavras de então de José Medeiros Ferreira em conversa informal com alguns de nós, seriam “o último grupo literário em Portugal”.
Eu estava longe de tudo e todos na altura, em Los Angeles, sem a mínima intenção de um dia regressar definitivamente ao meu país natal, mas já tinha iniciado no Diário de Notícias uma série de ensaios no suplemento Cultura sobre a literatura açoriana contemporânea a pedido de Mário Mesquita, então director do diário lisboeta. O movimento e o debate de ideias nos bastidores em São Miguel que levaram ao primeiro encontro da Maia são-me alheios, mas participei activamente desde o início com uma comunicação a convite dos seus organizadores. Daniel de Sá, Afonso Quental, Carlos Cordeiro e, um pouco mais tarde, Urbano Bettencourt, Silva Melo e José Bettencourt da Câmara, dinamizariam no Solar de Lalém essa convivência que durante alguns dias juntava escritores e estudiosos residentes no arquipélago, no Continente e na Diáspora, inclusive Brasil. A informalidade dos debates era algo de absolutamente novo num meio tradicionalmente sisudo e formalista como o nosso, a Imprensa regional da altura quase não compreendia que era possível e desejável a viva troca de ideias entre um grupo tão disperso e diversificado decorrer nesse ambiente de à-vontade, companheirismo, recordando, sempre, os que nos tinham antecedido e reinventando agora um espaço regional e nacional que desejávamos para que as vozes literárias de um povo continuassem e atravessassem outras fronteiras. Estes objectivos seriam em parte conseguidos, e toda uma geração “redefinia-se”: a açorianidade tomava agora várias formas, era vivida e escrita nas mais longínquas geografias marcadas pela nossa presença histórica. A “unidade” dos que tinham os Açores como ponto de partida não implicava qualquer projecto pré-determinado, a escrita açoriana entrava numa outra fase de universalidade que naturalmente se revia nas mais variadas formas, nos mais originais e por vezes inesperados temas., para além do isolamento e subdesenvolvimento, emigração e guerra colonial. Quem não queria ser identificado como “escritor açoriano” ou ser incluído num corpo literário definido como “literatura açoriana” estava mais do que livre para seguir o seu caminho sem nunca ser hostilizado, muito menos “excluído” do grupo. Pelo contrário, alguns deles nunca deixaram de ser convidados para estes e outros eventos em que poderiam usar o seu tempo e os quinze minutos de atenção para expressarem o que lhes ia na alma, e por vezes na mente. Foi, para mim sem qualquer dúvida, um dos momentos culturais mais livres e abertos da nossa região, perante o qual o Poder se absteve de qualquer intromissão, participando ou não conforme a sua vontade, mas apoiando sempre o grupo fundador no seu projecto e propósitos de abertura cultural na nossa terra. Após os três anos da Maia, haveria ainda nova tentativa de perpetuar esses momentos, na Praia da Vitória (1994), e depois nas Velas, São Jorge (1998), mas nada seria mais como dantes, uma vaga e indefinida crispação tinha sido provocada por novas intervenções desagregadoras a vários níveis. Dirão outros, provavelmente, que se seguia um novo e inevitável rumo, cada um regressando ao seu isolamento ante a tarefa sempre inacabada que será responder ao invencível chamamento da escrita e criação.
Olho aqui para algumas fotos dos encontros da Maia, e vejo um grupo de pessoas absolutamente representativo de toda uma geração dispersa, mas que insistia em manter-se ligada, por todos os meios, às suas ilhas de nascença ou adopção. Chegaram à Maia com o espírito aberto e debatendo sem complexos as questões que então rodeavam a produção literária dos ou nos Açores, uma regenerada noção da açorianidade/açorianidades, juntamente com a famosa polémica sobre a existência ou não de um literatura açoriana adentro do cânone nacional. Muitas palavras foram ditas, muita tinta correu na defesa ou na contestação de conceitos, para hoje cada um de nós se referir como muito bem quiser ou entender ao que se escreve tendo as ilhas como cenário parcial ou total: “literatura açoriana”, “literatura de expressão açoriana”, pouco importa. O facto é que todo um corpo literário começou a ser reconhecido com maior atenção e interesse tanto no nosso próprio país como noutros onde os estudos portugueses em geral ocupam algum nicho universitário ou comunitário. Depressa começariam aparecer estudos e teses de mestrado e doutoramento focando a literatura e cultura açorianas, especialmente nalgumas universidades brasileiras, de Porto Alegre a Brasília. Ainda há bem pouco tempo Lusa Maria de Melo Ponte doutorou-se na Universidade de Paris-Sorbonne com uma tese sobre o suplemento literário Glacial, (1967-1974), do diário angrense A União. A nova narrativa açoriana passaria a influenciar decisivamente o nosso discurso intelectual e politico.
Olhando de novo para a foto da Maia, verificamos também que entre os escritores que lá se reuniram está um grupo de conhecidos Professores da Universidade dos Açores, que legitimaram ainda mais o projecto então em curso. Aconteceu nesse ambiente informal e mais ou menos improvisado a duradoura troca de informação, reinterpretações da nossa hi
stória literária, literatura erudita e popular na mais natural convivência, duas gerações em acesa conversa sobre o seu passado e futuro.
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Os Encontros Literários da Maia, S. Miguel, 1988-1991.
A foto aqui é de 1989,acervo pessoal do autor.