Qual cidade queremos para esta Ilha?
Amílcar Neves
A pergunta deveria ter sido feita na década de 50. No mais tardar, no início dos anos 60. Aliás, deveriam ter sido feita a pergunta e dada a resposta. Qual cidade queremos plantada nesta Ilha?
Talvez pergunta e respostas (nunca seria uma única resposta) tenham ocorrido. Mas aí veio 1964, o golpe militar de 1º de abril com apoio de civis oportunistas que derrubou o presidente democraticamente eleito, que rasgou a Constituição, que implantou uma ditadura cruel e que espalhou o terror em todo o País – terror de Estado, inadmissível sob qualquer argumento. Durante 21 anos ninguém pôde impunemente perguntar nada e, menos ainda, discutir caminhos, alternativas, opções, ideais. Não se podia viajar para o exterior e ver o que acontecia lá fora, não existia a internet pulverizada em cada computador. Não havia sequer computadores pessoais. O que acontecia lá fora por si só já questionava o que se fazia aqui. Daí a censura ao pensamento crítico e o controle do que as pessoas liam, viam ou aonde iam. Ditaduras funcionam assim: implantam o medo como política de governo mas têm um medo terrível de ideias, de palavras, de livros e de sonhos. Estas coisas costumam ser muito perigosas.
Assim, onisciente, a ditadura se associou a empresários gananciosos, se apoiou em políticos carreiristas, seduziu com o falso (e caríssimo) milagre brasileiro a classe média deslumbrada e, aqui, neste pedaço de terra cercado de água por todos os lados, aterrou as baías e derrubou as casas velhas e abateu as árvores e permitiu a especulação desenfreada: nada de um projeto urbanístico, nada de avenidas nos bairros, nada de aproveitamento decente do mar, nada de paisagismo, nada de praças, parques e áreas verdes – o mar da Baía Sul, por exemplo, poderia continuar chegando até o Mercado Público e a Praça XV de Novembro, até o Forte Santa Bárbara, a sede dos clubes de remo e o Centro da cidade, até a Alfândega e o Miramar (nada justifica a sua demolição arbitrária) através de amplos braços de mar que possibilitassem a navegação em canais no meio de gramados frequentados pelas pessoas.
(Claro que esta redefinição urbanística ainda pode ocorrer: é bem mais barata do que construir uma Capital no centro geográfico do Estado, como querem alguns, como se a gestão pública a partir do ponto central fosse fundamental para o sucesso administrativo quando as alternativas de comunicação instantânea já estão à disposição dos mortais comuns. Fundamentais são seriedade de propósitos e honestidade de princípios, que parecem faltar a essa tese recorrente de centralização e à imensa maioria dos nossos homens públicos.)
O início simbólico de tudo o que se seguiu, o triste fim da cidade de Eduardo Dias, foi o soterramento da Ilha do Carvão, na década de 70, e a demolição do castelinho que ali havia, o qual supria de combustível as embarcações que singravam as duas baías em função de um porto que já existiu no Centro da cidade: ali se fincaram as patas da ponte que leva o nome do governador que a implantou.
Hoje, o que nos resta é isso: o cinismo e um vício de botar tudo abaixo antes que alguém tenha a péssima ideia de tombar (uma árvore, um casarão histórico, uma área pública, um pedaço de manguezal) e uma cidade que perdeu sua identidade e todo o charme histórico. Uma cidade entupida, uma cidade moderna igual a qualquer outra no mundo.
Hoje, só nos resta a Ilha. Mas por quanto tempo ela ainda resistirá, já tão gravemente mutilada também?
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Nota: Amilcar Neves é tubaronense.Escritor de crônicas, contos e romances, com oito livros publicados e no próximo dia 29 de abril estará fazendo o lançamento de mais:Se Te Castigo É Só Porque Eu Te Amo (teatro), editado pela Letras Contemporâneas e apoiado pelo Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura, da Fundação Catarinense de Cultura.