Sagitário
A manhã nascia, desenhada no horizonte com os tons alaranjados da esperança. Seria longa e penosa a viagem, por isso não podia perder um momento sequer. Trepou agilmente para o dorso do Açor, o seu cavalo negro como asa de um corvo, convertido em parte integrante do seu próprio corpo. Não se imaginava sem ele, era uma espécie de sagitário, descido das brumas do mito para habitar aquela terra.
Havia deixado a sua “ilha verde”, S. Miguel, ainda criança, mas ecoavam-lhe sempre na memória o azul daquele mar imenso, o verde gritante que atapetava os montes, tantas vezes calcorreados guiando a manada de vacas.
A miséria afugentara-o a ele e ao pai. Decidiram embarcar, à procura dessa terra prometida, desse mundo novo que abria as portas aos habitantes do velho continente, desgastado, empobrecido pelas pegadas da guerra, pelas garras fortes e implacáveis da ditadura. E a América começara a delinear-se no horizonte, feita da bruma diáfana de todas as ilusões.
Recordava ainda o sal das lágrimas ao deixar a casa, as irmãs e a mãe, os retalhos dispersos da sua infância. A felicidade era algo que ficava suspenso no tempo, indefinido até ao prometido regresso.
A viagem parecera interminável, o mar era infinito e os enjoos constantes…
Depois de percorrerem muitos portos, finalmente chegaram à terra desejada: a esplendorosa Buenos Aires. Ficou impressionado, nunca pensou que existisse nada de tão grande!
Nos «boliches»[1] do porto, imigrantes e velhos marinheiros cantavam e tocavam uma melodia dolente, vibrante ao som da saudade e dos amores perdidos do outro lado do rio, ou algures em qualquer rua dos «arrebaldes», dos bairros que rodeavam Buenos Aires. Descobriu aí um outro mundo, por onde escorriam ainda ecos de Gardel, «del dia en que me quieras»… O tango principiara por ser essa música «marginal» que destilava a amargura do amor sofrido ou perdido… em alguns boliches apenas frequentados por homens, estes dançavam uns com os outros, o que lhe causou no início estranheza. Estranheza lhe provocava também aquele novo idioma simultaneamente semelhante e distinto… esse “falar” adocicado que, a partir de certa altura, acabou por se converter na sua língua.
Uma suave brisa embalava as crinas do cavalo, enquanto galopava como um relâmpago negro pela planície deserta. Aquela extensão de terra era tão distinta dos seus montes verdejantes, marchetados de hortênsias. Contudo, há muito que a sentira como sua e nela mergulhavam já as raízes do seu ser.
Primeiro, haviam conseguido trabalho numa quinta (ele como tratador de cavalos) e o pai no campo, numa pequena aldeia não muito distante de Buenos Aires. Todavia, quis o destino que cruzasse um dia o rio da Prata e se encantasse pelo país vizinho, mais tranquilo e modesto.
Após anos de grande labuta, acabou por se fixar perto duma cidade uruguaia chamada Colónia do Sacramento, onde conseguiu finalmente ter a sua própria quinta e alguns cavalos. Curiosamente, Colónia do Sacramento era o local onde ainda sobreviviam as marcas de Portugal. Fora fundada em 1680 pelos portugueses e durante séculos foi o «pomo da discórdia» e o motivo de sangrentas lutas com a coroa espanhola. Agora, convertida em Património Mundial, constituía uma evocação nostálgica desse passado longínquo, que se revivia ao percorrer a «calle de los suspiros», totalmente povoada de casa de arquitectura tipicamente portuguesa. No entanto, o tempo havia inscrito nelas a sua marca inexorável e inadiável. Cruzada pelo Rio da Prata e separada de Buenos Aires apenas por quarenta e cinco minutos de barco, assumia-se como um refúgio de amores clandestinos e proibidos.
Puxou as rédeas do Açor, abriu o matero[1], verteu a água do termo e saboreou o gole quente e amargo do inseparável e imprescindível «mate»[2].
Estava ansioso por chegar a Montevideu, para participar em mais uma «Rural do Prado», uma espécie de feira agrícola que divulgava os produtos típicos do «Uruguai rural», e tinha como especial atractivo as “domas”. Para ele, era, indubitavelmente, o momento mais desejado e importante do ano. Sonhava com o instante em que entraria no recinto e seria aplaudido, coberto de glória e flores. Consideravam-no unanimemente um dos grandes “mestres” na arte de domar cavalos. Sentia uma empatia tal pelos animais que eles se lhe rendiam incondicionalmente. Cavalgou durante horas perdidas, até devorar os cerca de 150kms que o separavam da capital. Para trás, ficavam as nuvens de poeira levantadas pelas patas do cavalo, breves e efémeras como a maioria das ilusões. O seu Açor era já parte fundamental do seu corpo como um braço ou uma perna. Sentia-se cada vez mais como uma espécie de sagitário, comungando tanto da natureza humana como da animal.
Finalmente, quando o sol já se despedia no ocaso, entrou na cidade e dirigiu-se para a zona do Prado, espaço amplo e verdejante onde ainda se erguiam os palacetes de outros tempos, cravados de memória e riquezas passadas.
Já um turbilhão de gente e de cavalos se agitavam no local onde ia decorrer o evento. Montou a sua tenda. No dia seguinte, teriam lugar as domas. Os bravos potros seriam domesticados, montados pela primeira vez, o que consistia um espectáculo tradicional, apanágio da tradição «gaúcha».
No entanto, a chuva caía insistentemente e o frio húmido penetrava até aos ossos. Enroscou-se no cobertor e colocou-se em posição fetal, sentindo-se exausto e moído pela longa viagem.
Sonhou novamente com a tarde seguinte, em que uma vez mais iria mostrar a sua arte. Ia ensinar aos ginetes mais novos toda a sua ciência, mostrar ao público o fruto de toda a sua vida. Começava a sentir que a idade lhe tolhia as forças, o pincel do tempo desenhava-lhe cada vez mais rugas no rosto, e pintava de branco os seus cabelos ainda ligeiramente acastanhados. Dentro de poucos anos, talvez já não pudesse participar na «Rural del Prado», por isso, desta vez teria de dar o seu melhor, como se fosse a sua primeira e última doma. Queria deixar o seu nome escrito pelos dedos indeléveis da glória.
Se os seus pais o vissem compreenderiam como tinha valido a pena cruzar um oceano e um rio para ser quem era…
De súbito, um relincho lancinante despertou-o como um dardo… esfregou os olhos estremunhado e o ruído repetiu-se. Lá fora, a chuva prosseguia a sua melodia monótona e constante, mas a trovoada parecia ter-se afastado. Reconheceu imediatamente a «voz» do seu Açor e sentiu-se preocupado. Talvez tivesse frio, coitado… o estábulo improvisado não se tornava muito confortável com aquele tempo. Agarrou num dos cobertores que o agasalhavam e saiu sorrateiramente para não despertar ninguém.
Entrou no estábulo e viu que Açor lutava nervosamente com outro cavalo, que lhe invadira o espaço. Aproximou-se e colocou-lhe a mão no dorso para o acalmar… mas nesse momento o animal enfurecido, desferiu um forte coice para afastar definitivamente o rival… contudo, foi o dono quem o recebeu de chofre, num estrondo seco que o projectou para o solo, como um ramo seco partido pelo vento.
Ao aperceber-se do sucedido, o animal soltou gemidos desesperados e dolorosos duma angústia incomensurável, como se houvesse destruído a sua própria alma.
Imediatamente chegou gente atraída pelo barulho, ouviram-se sirenes, uma maca que se aproximou, pessoas de bata branca… Ele contorcia-se ai
nda no chão do estábulo, lutando pela derradeira nesga de vida: sagitário automutilado, prestes a regressar ao reino eterno do mito. Enquanto a morte se perfilava, de mãos dadas com a névoa matinal, via jorrar os primeiros raios de luz anunciadores do amanhecer daquele dia de glória, agora eternamente adiada.
Dora Nunes Gago, colectânea Contos do Rio da Prata (inédita)
[1] Recipiente térmico, semelhante a um cantil onde se leva o mate para beber.
[2] Bebida, semelhante ao chá, preparada por infusão de uma planta («yerba mate»).
[1] Designação dada às tabernas em Buenos Aires e Montevideu.
Dora Nunes Gago é professora, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas, investigadora de pós-doutoramento da FCT, na Universidade de Aveiro. Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005; A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (dissertação de doutoramento), Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias. Tem apresentado igualmente diversas comunicações em Congressos Internacionais em Portugal e no estrangeiro.
Fotos -Açores- de Jorge Blayer Góis
www.jorgegois.com