Meu querido amigo,
“Deixem o canto correr”, pedes tu no poema que abre esta colecção de tão belos versos sobre os gostos que te ficaram na alma. Deixa agora que te diga um pouco do que ficou na minha depois de te ler.
E terei de começar pelo mais óbvio, “esse mar, sempre cantado pelos poetas açorianos”, nas palavras de Olegário Paz, embora (digo eu) cada um lhe emprestando cores, sabores e sentimentos diversos. Não posso mesmo deixar de começar assim, até porque neste momento em que te releio quis a sorte que o tivesse fisicamente diante dos olhos lavados nele, os ouvidos cheios do seu enrolar perpétuo, lembrando-me o dito de outro poeta, o Jorgense Artur Goulart, de quem ambos gostamos muito: “em terra bem me procuro / só me conheço no mar”. Mas há mais razões, há ondas do mar salgado atravessando toda a poesia reunida neste volume. Mais de sessenta por cento dos poemas (fiz as contas) se lhe referem explicitamente. Quando não por nome, nomeando os seus habitantes – leviatãs, sereias, garças, peixes, (até voadores) búzios, conchas e sargos; os seus navegantes – marinheiros e gajeiros, pescadores com sua cana de pesca, seu anzol, seu enxalavar, caravelas, canoas, batéis, vapores, toda a casta de barcos com suas velas, sua ré, sua proa e seu casco; os próprios elementos de que é feito – vagas, marés, maresia e marulhar, espuma branca, areia doirada, musgo, ilhas, ilhéus e sal; e ainda os seus arredores – baías, cais, portos, vigias de baleia, rocha, calhau ou farol. Porque, enfim, como tão bem cantas na tua “Homenagem de Sal”: “Mar/ amigo salgado / é um pecado / deixar-te /…/ Mar”. E porque te não cansas de repetir em vários tons e escalas: “Sou do mar, da pedra grande”, “do mar herdeiro e/irmão eterno”.
A-mar, outro correlato de O-mar – neste caso um correlato fonético e quiasmático (tens mesmo um soneto intitulado “Amor de mar”) – é mais uma constante destes teus versos, seu leitmotif também, e igualmente polissémico. O amor da terra, por exemplo. Terra lugar de origem (“Ilha meu amor”; “Somos romeiros do norte de uma ilha verde”) e terra-chão, solo de árvores e raízes tenras – avesso da liquidez oceânica e nem por isso reclamando menos os afectos do poeta que se auto-define como “alma partida ao meio: / cada metade um destino. / Minha mãe, Maria terra / E meu pai / Toino do mar”. Muitas vezes, aliás, irrompe o teu enternecimento pelos frutos da terra e os seres que a habitam. Em “Oração verde” prestas homenagem à árvore, invocando-a assim: “Na cidade onde moramos / companheira, eu te quero. / E no campo onde vivemos / Minha deusa, eu te adoro.” (Aqui notei a dicotomia moramos / vivemos – tiveste consciência da implícita associação de urbano com morar e de viver com maior proximidade da natureza?). Deixa-me dizer-te, ainda a propósito deste mesmo poema, que a forma de prece, por ti adoptada também noutros lugares – e epitomizada no “Salmo de José” – vem sempre moldada no perfeito ritmo melódico de certo rezar da minha infância. Faz ponte entre as alturas e o chão que pisamos, evoca em mim uma espécie de espiritualidade telúrica, passe o oxímoro aparente.
Voltando ao amor, destaque-se o das pessoas. Muito particularmente na secção final, a tua “Pausa de ternura”. Os poemas aos teus filhos, aos teus netos, à Lourdes são de uma beleza formal talvez só comparável em grau à autenticidade emotiva que respiram. Apetecia alongar-me comentando as graças de cada um, mas basta relevá-los aqui, os teus outros leitores saberão apreciá-los sem obstruções da minha parte.
Sobre os temas e motivos que escolheste não pretendo obviamente ser exaustiva, permite-me contudo que refira só mais um, a dor da diáspora açoriana em terras de Uncle Sam, expressa no fio de nostalgia de um mundo perdido mas sempre achado no sub-texto desta tua abreviada auto-biografia poética: “Que será mais fácil: /Pescar no Atlântico/Com neve na coberta / […] /Ou / O que teria sido mais fácil: /Viver morrendo / No basalto morno?” A busca do tempo perdido e a diferença entre o aqui e o lá são às vezes explícitas – “E / diz-me se por aí / é poesia contar / que no reino de cá / se mastiga saudade à hora do almoço” ou, “crianças no bus/Marias no ride / […] café da manhã/ brake e um cigarro / e tudo tão pouco / no país de tanto”
– ou apenas subtilmente sugeridas, como nas aliterações desse lindíssimo poema à tua neta primogénita: “Na planura longa e loira / Bafo quente manjedoira / Das terras longes e fartas / Nasceste / Nina menina nina / No seio de amor ilhéu / Em continentes de esperanças / De mamãpapávavós/ […] / Minhanossa Catarina”.
Em todo o caso, aos que têm “[m]ovido o coração pela lembrança/ De ter perdido estrelas encontradas”, o teu conselho parece ser o que registas em “Por aqui”, o último dos sonetos nesta colecção: “Não deixes que esta neve, suja e pobre / Mantilha deste espaço mal amado, / Venha matar-te o verde que é tão nobre”.
Vou também eu ficar-me por aqui. Ah, mas não sem antes te dizer, para o que possa valer a opinião de uma leitora rendida, que parece teres encontrado, ou reiterado, a tua própria, pessoalíssima voz. Uma voz que te permite comunicar-nos em finas entoações o teu extraordinário ouvido musical. Com mestria singular, usas múltiplas formas de versificação, de métrica, de prosódia. A mim o que acima de tudo fascina é a habilidade de combinares a mais clássica, mais antiga, tradição lírica portuguesa com as tuas elegantes idiossincracias poéticas. Como Nemésio, como Garrett, como Camões, para citar só esses dos nossos canónicos, alcanças excelência na articulação das raízes da poesia oral com outras formas de sofisticação. Deixa-me concluír tentando substanciar um pouco este último argumento. Primeiro um exemplo do romance (“Rimanço”, chamas-lhe tu) popular, captado no ritmo, nas rimas, nos tempos verbais: “Boa nova adivinhava / O que outros não sabiam: / A que horas se deitavam / Os donos da mordomia, / Mais o tempo que faltava / P’ra nascer a luz do dia”. Depois o compasso da dança e do canto: “Tio Moisés da terra verde / Põe-se a pensar como é / Que tanta gente se perde / Mesmo não tirando o pé / […] / Oi, fofa da minha vida/ Ai vida irmã da morte/ Quis dançar a fofa antiga/ […] / Fiquei sem balho nem sorte”. Por fim, os ecos camonianos, em especial de “Sôbo-los rios que vão”, naquela “Cantilena” de certo “canarinho”: “Tu, que vais por esse andar, / Pensa na vida que levas. / Caminha mais devagar. / Que também hás-de deixar / A cantiga a que te apegas.”
E já que falamos de filiações canónicas, não resisto a lembar-te, agora, juro, mesmo a findar, a ressonância pessoana, porventura piscadela de olho ao Pessoa da Mensagem, na tua “Impressão 1”, exortando Lisboa, achada “queda”, “ao canto da história por tanto tempo”: “Acorda, Lisboa! / Que há um Tejo / em risco de secar.”
E com estas mal traçadas linhas recebe, e partilha com os teus, o abraço grande e amigo da
Leonor
Leonor Simas-Almeida, Senior Lecturer, Brown University.
(*) Fotos: acervo do autor.
Capa e contra capa do livro,Ed-Publiçor
Sessão de lançamento na Livraria SolMar,Ponta Delgada,ago.2011