Sem tempo para detalhar os contextos,exemplifico. A curiosidade pela descoberta de um cadáver na novela “ Vindita Braba” mexe com a paz da aldeia. Escreve Othon D`Eça:
“ E já os dois filhos de Manoel Balbino pegavam no defunto,quando o coronel, que vinha de grupo adonde o Alvico da Gertrudes arresmungava por mode o descaso da velha, falou que não fizessem aquilo, que deixassem o homem pra Polícia bulir, pois era proibido cutucar defuntos antes do Delegado.”
O defundo era o Miguelino, vilão da novela, cujas maldades tornavam o “achado”, aquele corpo, motivo de tristeza e celebração.
O Miguelino era mesmo um “demonho,”achava um pescador.
E o outro,respondendo a essa “acusação”:
– Agora,siô! – esse “agora” no sentido de “nada disso”, “onde já se
viu”!
– Cant`eu…- disse o seu interlocutor,(no sentido de “quanto a mim”)
cant`eu aquilo era criatura de ruindades, pois não foi pra boa coisa
que Deus Nosso Senhor o marcou daqueles jeitos.
Em “Mau tempo no Canal” Nemésio elege o velho arpoador de baleias,Tio Amaro da Mirateca,como o tipo heróico-popular da Ilha do Pico. Reunidos numa taberna,os baleeiros pretendem insurgir-se contra uma ordem de arresto dos botes,forjada por um certo Januário Garcia. Perante a revolta dos demais, ele se mantém resoluto, barrando a insurreição.
Escreve Nemésio:
“…o velho,sem,pau, nem pedra,tomava de braços abertos a porta principal do botequim. A luz do reflector do candeeiro de parede dava-lhe na barba alva de neve; e o seu vulto seco,marcado por aquele brinco de mulher que um nariz bem riscado desmentia,parecia Abraão,apontando o caminho de honra a uma Israel tresmalhada”.
Tio Amaro declarou sua honra “ultrajada” e ameaçou desistir do seu posto de arpoador,esconjurando:
– D`já hoje em diante já não sou trançador. Essa canalha do mar fez-
me uma grande escândula. Borraram-me as barbas, diante de
mulheres e crianças! A mim! Q`andei um ano no Arioche ,três no
Oeste Negão e dois no Japanis. Eu sou de orelha furada!
Esse “D`já hoje” poderia ser ouvido no Ribeirão,ao sul, ou na Lagoinha, ao norte da Ilha de Santa Catarina. Ou esse “Q`anteu,ou Q`antei”.
No conto e na novela de Othon D`Eça e na ficção de Nemésio criou-se um ritmo de pensamento humano e uma lingüística da açorianidade que não se limita a transcrever o rigor do jeito açoriano de falar,mais o amplia e o (re)inventa.
A açorianidade navegou para muito além da dor e do Bojador e se espelha aqui,nesta Ilha dos mares do Sul,berço do autor de “Homens e Algas”.
Sérgio da Costa Ramos
É escritor,jornalista,um dos mais admirados cronistas de Santa Catarina. Suas crônicas estão publicadas no Diário Catarinense,onde assina uma coluna diária e também reunidas em diversos livros. O autor é membro da Academia Catarinense de letras-ACL.
Créditos imagens:
1. de Othon DÉça – acervo ACLetras
2. Oceano Atlântico ou Marzão da Jaguaruna,de Lélia PSNunes,fev.2010