Celebrando 75 anos de idade (e 60 de escrita publicada), José Henrique do Álamo Oliveira é um dos nomes mais representativos da açorianidade literária. Como escritor, está representado em mais de uma dezena de antologias de poesia e ficção narrativa, em Portugal e no estrangeiro, e alguns dos seus 40 livros até hoje publicados estão traduzidos em inglês, italiano, espanhol, croata, esloveno e japonês.
Mas de que falamos nós quando falamos de Álamo Oliveira? Falamos, acima de tudo, de uma inesgotável capacidade de criação.
Tendo feito estudos no Seminário de Angra, que lhe deu grande bagagem na área das Humanísticas, este terceirense do Raminho é autor múltiplo e polivalente, senhor que é de várias artes, de eclécticas escritas e muitos ofícios. Funcionário público aposentado, para além de ser poeta, romancista, dramaturgo, novelista, contista, cronista, letrista e ensaísta (nas áreas da literatura, da sociologia e da antropologia cultural), Álamo é também coordenador do suplementarismo cultural, palestrante, ilustrador e autor de capas de livros. Sócio fundador do grupo de teatro “Alpendre” (1976), para o qual escreveu peças fundamentais, foi seu director artístico e encenador, tendo também sido actor, figurinista, aderecista, crítico de teatro e de artes plásticas, pintor, animador cultural, desenhador, ensaiador de marchas e até autor de músicas. Nos tempos que correm é o regente do Grupo Coral do Raminho e, não há muito tempo, surpreendi-o a ornamentar a igreja daquela freguesia. Costumo dizer, na brincadeira, que a única coisa que o Álamo não sabe fazer é conduzir automóveis…
O neologismo “escreviver” aplica-se às mil maravilhas a este autor, já que, na sua obra, vida e escrita são indissociáveis. Vivendo na ilha Terceira, seu microcosmo de referência, Álamo conhece bem a natureza do povo ilhéu em todas as suas contradições e contrastes, vilezas e grandezas. Com imaginação criadora, penetrante argúcia e expressão poética, ele (d)escreve a ilha e a diáspora açoriana em toda a sua dimensão telúrica e humana, pois que a literatura outra coisa não é se não uma procura do sentido da vida e uma interrogação do homem. E do Raminho ele escreve para o Mundo, lançando olhares desapiedados sobre alguns dos acontecimentos que marcaram a nossa história e a nossa vivência nos últimos 60 anos, dando conta de questões fundamentais da condição humana.
Artesão das palavras únicas e essenciais, sempre em busca de novas significações para as mesmas, é bem conhecida a carpintaria poética de Álamo Oliveira, desde Pão Verde (1971), passando pelo excelente Os Quinze Misteriosos Mistérios (1976) até Andanças de Pedra e Cal (2009). Há neste autor um modo insulado de ver as coisas, de as reflectir, coar, transcrever e transfigurar. E há todo um fluxo poético que atravessa toda a escrita alamiana, mesmo na sua prosa. Porque é visceralmente poeta, Álamo é já a poética da sua prosa. E sempre com a ironia (por vezes cáustica) a rondar por perto, ironia que ele utiliza como instrumento crítico para visar representantes de estratos sociais bem definidos. Leia-se, a propósito, os seus dois livros de contos e, sobretudo, a sua novela Burra preta com uma lágrima (1982) e o seu romance Pátio da Alfândega-Meia Noite – ajuste de contas com o passado histórico e com o presente de mudança.
Telurismo e contencioso social são duas temáticas fundamentais na poética, na ficção narrativa e na dramaturgia de Álamo Oliveira. Nesta última, temos as peças Manuel, 6 vezes pensei em ti (1977) e Missa terra lavrada (1984). Gosto particularmente dos romances Marta de Jesus, a verdadeira (2014) pela sua intensa carga simbólica, nesse entrelaçar entre o texto bíblico e a ficção narrativa, ou seja, tensão interior entre literatura e religiosidade; e Já não gosto de chocolates (1999) sobre o fenómeno social da emigração açoriana, aqui com tratamento literário. Joe Sylvia, ao deixar de acreditar no sonho americano, simbolicamente deixa também de gostar de chocolates. E está lá tudo: a resistência e resiliência das comunidades emigradas dos Açores, a inadaptação, a aculturação, o conflito de gerações…
Por outro lado, há este dado inapelável: a escrita de Álamo Oliveira é, quase sempre, transgressiva e transgressora. Recorde-se a forma como abertamente o autor trata o tema da homossexualidade em Até hoje (memórias de cão), romance (1986) sobre a Guerra Colonial e que dá conta de um relação amorosa no masculino (entre João e Fernando); e também em Murmúrios com Vinho e Missa (2013), com o mesmo domínio temático e abordagem ficcionada, em que as personagens vivem em ruptura e conflito aberto com as normas sociais (que rejeitam e reprimem quem é diferente) e com os paradigmas aceites (e exaltados) pela comunidade. São personagens que, de forma ousada e audaciosa, dizem não às interdições, aos falsos moralismos, à hipocrisia… De resto, esse arrojo amoroso já estava contido na poesia de carácter homoerótico deste autor: Cantar o corpo (1979), por exemplo.
Como um Jano de duas faces, Álamo Oliveira mergulha fundo no imaginário açoriano, para logo regressar à superfície, de olhar apontado à ficção moderna sem ceder às lusas modas literárias do indizível e do desconstrutivismo. O poeta-escritor, inquieto e inquietante, resiste, ainda e sempre, na escrita, pois sabe (porque aprendeu a lição de André Gide) que “não se escreve boa literatura com bons sentimentos”.
Longa vida ao Álamo Oliveira, homem do seu lugar e do seu tempo, cidadão condecorado, insigniado e comendador e, acima de tudo, cavaleiro andante por amor à Literatura!
Horta, 19/07/2020
Victor Rui Dores