Notas de Leitura
Divulgar, relatando-as num diário, as vivências, as vicissitudes, os tormentos por que passa quem teve a pouca sorte de ser atacado por esse ‘monstro’ que dá pelo nome de cancro pode trazer vantagens para quem lê e trá-las, seguramente, para a vítima, pois é-lhe uma espécie de esconjuro que, mais do que a suportar o ‘bicho’, ajuda a enfrentá-lo com todos os meios e forças possíveis. José Guilherme Macedo Fernandes, perdão, André Moa escriba deste diário afirma-o, repetidas vezes e cita em seu abono o autor de Anticancro (Caderno, 2008) David Servan-Schreiber neuropsiquiatra «médico canceroso que, passados quinze anos de luta surda, arranjou coragem e resolveu divulgar a sua experiência iluminada com os seus conhecimentos para assim melhor poder contribuir para a aceitação, compreensão e cura de tal flagelo» – (2010-11-28).
«Parece ser este o itinerário normal: intestino grosso, pulmões, cabeça». «A neoplasia retal, bem como todos os extras e colaterais sentidos na mesma altura foram objeto de relato circunstanciado no MAU TEMPO NO ANAL – Diário de um Paciente». «GUERRA NOS BOFES – Diário de um Paciente 2 – reporta-se ao ciclo em que o cancro se alojou, como metástase, nos pulmões e só nos pulmões». Estas afirmações leem-se no princípio e no fim de três anos e vinte e cinco dias da vida do diarista aqui registados, de 12 de dezembro de 2007 a 7 de janeiro de 2011, e dizem bem da razão de ser deste diário, relato da luta encarniçada contra a «pertinácia» do cancro. Em tal peleja, André Moa encontrou adjuvantes: no seu pensamento positivo, «a saúde vai ótima, digo eu, que sou um otimista inveterado» – (809-01-11), na família e nos amigos, na medicina e seus agentes, na leitura e na escrita.
A família e os amigos constituem o esteio fundamental da sua resistência: «Grande ajuda a do meu lindo Luís Tiago, de todos os familiares e amigos que se têm manifestado e mesmo daqueles que não se têm manifestado tanto, mas que eu sei que estão a torcer pela vitória cá do rapaz contra este Golias temível mas não invencível» – (2008-09-11). Amparo do irmão, das irmãs, do cunhado, da mulher, Teresa, dos filhos Susana e Pedro e particularmente do netinho por quem pede: «O tempo que tudo cria / O [Ano Novo] ouça / E me dê tempo / Para que eu possa / Ajudar o meu neto a crescer / Como deve ser: / Em saúde, bondade, amor e sabedoria» -(2011-01-01). Relativamente aos amigos, são inúmeras as entradas do diário que testemunham. A blogosfera ocupou um papel de relevo particularmente através do blogue Catedral criado por Salvador Vaz da Silva como André Moa, lutador com quem empareceirou na «onda de solidariedade com os sofredores deste flagelo tão em voga e de algumas generosas pessoas que procuram por todos os meios, nomeadamente interesse, compreensão, acompanhamento, estímulo, amizade, dulcificar o mais que sabem e podem as nossas inquietações» – (2008-07-29).
Grande parte das entradas falam-nos, como é natural, de médicas e médicos, de enfermeiras e enfermeiros, de hospitais; de exames, análises e TAC ; de quimioterapia «[…] ficou marcada para amanhã a primeira sessão de quimioterapia. Pelas veias, uma bela pomada alentejana, devidamente graduada, para saborear no hospital, em regime ambulatório de três em três semanas (nas duas quintas-feiras intercalares, será a vez de anticorpos e outros produtos indispensáveis a um bom tratamento). Tomarei ainda químio em comprimidos – a já conhecida e caseira pomada – um bom Douro – duas vezes ao dia, durante duas semanas. Na terceira semana haverá um interregno que culminará com um novo hemograma. Se os parâmetros se mantiveram dentro de valores aceitáveis, recomeçará novo ciclo. E por aí fora, até o médico dizer já chega – (2008-07-16). Acrescentem-se sessões de acupuntura, terapeuta quântica, alimentação vegetariana.
André Moa, poeta com vários livros publicados, distribuiu, ao longo deste diário, um conjunto considerável de poesias representativas do seu estro. Leiam-se, por exemplo, “Dia da Árvore, Dia da Poesia” (2009-03-21), “Alana” (2009-10-26), “Ano Novo Vida Nova (2010-01-01). São mais de trinta poemas em larga variedade de formas versando temáticas diversas de caráter predominantemente circunstancial e popular. Em prosa escorreita surgem-nos, para além das centenas de entradas informativas do seu estado de saúde, artigos de opinião que passam pela filosofia – “De Marx a Darwin” (2010-01-1), pela religião – “Eu sou D(eu)s” (1010-01-20), pela moral – “Biblioteca Fútil ou a atração da merda” (2010-02-23), pela política – “Democracia e laicidade” (2010-11-15), pela literatura – “Do benefício dos anos” (2010-03-20), pela linguística – [Acordo Ortográfico] (2009-04-28), quase sempre suscitados pelas leituras que ia fazendo.
«Quando mergulho na leitura alheio-me de tudo o resto, perdendo mesmo a noção do tempo» (2009-04-08). E são muitos os autores a que se refere e cuja escrita muitas vezes comenta: de José Luís Peixoto a Miguel Torga e Fernando Pessoa, de Onésimo Teotónio de Almeida a José Rodrigues Miguéis, de Urbano Tavares Rodrigues a José Pedro Machado, do já citado David Servan-Schreiber a Max Weber, de Vasco Pereira da Costa a Álamo Oliveira, de Gabriela Silva a Aida Batista e Aquilino Ribeiro. Filomena Silva e Aida Batista, autoras de Entre Margens de Afectos, mereceram tratamento especial da parte de André Moa mas o maior relevo vai para o «mestre» Aquilino Ribeiro que «chegou até mim em jeito e em força, na hora precisa, quando eu mais necessito de me debruçar sobre as raízes, agora que as folhas teimosamente deram em secar e não tardarão muitos Invernos que não murchem, não se soltem da árvore da vida para apodrecermos – eu, tronco e folhas – neste chão duro que tanto gosto de repisar» (2008-11-20). A obra preferida parece ser Geografia Sentimental (História, Paisagem, Folclore) por nela ver retratada muito da sua adolescência (2009-04-26).
Ao findar estas notas, a referência a um dos traços que melhor caracterizam este herói da luta contra o cancro, a sua incomparável veia humorista. Um autorretrato: «Sinto-me muito fraco, perdi bastante massa muscular que já não era abundante (fui sempre muito elegante, isto é, um bom pau de virar tripas, um perfeito cabide, um senhor palito, comprido mas aguçado)» – (2008-09-29); «Os dedos é que estão uma lástima – dedos, sabugo das unhas e mãos em geral). Não posso tocar piano (também não faz mal, que não sei), nem escrever muito ao computador» – (2008-11-13); «O Luís Tiago é lindo, de facto. Pudera, sai ao avô!» – (2009-03-27). E o seu indefetível apego à vida: «Este “bicharoco” anda mesmo a querer medir forças comigo. Acaba de passar-me uma rasteira que me levou a ir festejar o réveillon no Hospital de Santa Maria. Mas o “bichinho” está muito enganado! Por mais fintas que faça, não vai conseguir levar-me ao tapete. Era o que faltava! Para mais com a legião de amigos que me estimula e me escuda! Para mais com o meu neto a preencher-me a Vida!» – (2011-01-05).
Mora, junho de 2011
Olegário Paz
Traços bio-bibliográficos
«André Moa [pseudónimo de José Guilherme Macedo Fernandes] nasceu em Tabuaço, concelho românico e romântico do Douro Vinhateiro, Património Mundial. Licenciado em Direito, foi magistrado do ministério público, advogado, professor, autarca, técnico superior e dirigente da Segurança Social.
Está incluído na antologia 14 Poetas daqui e de agora, Angra do Heroísmo, cidade onde também participou com textos poéticos numa exposição coletiva de poesia e pintura, experiência que repetiu em várias outras cidades, frequentemente em parceria com a pintora Dad.
Escreveu textos de ficção e poesia, entre os quais Antologia de Um Desconhecido – Cantata da paz em Do Menor, Poemas Indefinidos, Espaço Disponível, Liturgia das Horas, Medos e Mitos, Uma Réstia de Amor ou Barqueiro do Rio OM. E também coautor de alguns álbuns ilustrados».
(in Contracapa de Mau tempo no anal, Diário de um paciente, 2009)