Tudo começou na segunda metade do século XVIII, mais precisamente entre 1748 e 1756, quando cerca de seis mil açorianos, na sua maioria oriundos das ilhas Terceira, Graciosa, Pico, Faial e S. Jorge, chegaram ao sul do Brasil.
Duzentos e sessenta e três anos após a chegada desses primeiros casais açorianos à ilha de Santa Catarina, a que se juntaram alguns madeirenses, ficou a saudade dos que partiram e a saudade dos que ficaram. Ficou, acima de tudo, a sabedoria, a história, o imaginário, a cultura e a memória de um povo.
“Açorianidade” rima com “brasilidade” que rima com “multiculturalidade”.
Existe hoje, no Estado de Santa Catarina, um milhão e quinhentos mil descendentes de açorianos. Nos tempos que correm a flor laelia purpurata é o símbolo ecológico da ilha de Santa Catarina. E Lélia Pereira da Silva Nunes é o símbolo da convergência de culturas nos dois lados do Atlântico.
Observadora atentíssima do real e do fantástico, mulher dos afectos e do diálogo fraterno, a ela se refere o luminoso e iluminado Eduíno de Jesus nos seguintes termos: “escritora brasileira dos Açores ou açoriana da ilha de Santa Catarina”.
Socióloga e etnóloga, descendente de povoadores açorianos que se estabeleceram no Rio Tubarão, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina, agora aposentada, Lélia Nunes tem dedicado a maior parte do seu trabalho à pesquisa e estudo das sobrevivências culturais açorianas no sul do Brasil, com especial incidência no Estado de Santa Catarina. Há, nesta brasileira, a necessidade absoluta, vital, de dar testemunho, ela que se considera uma “açoriana de 263 anos”.
Autora de duas obras de referência, Zumblick, uma história de Vida e Arte (Ed. Senado Federal, Brasília, 1993) e Caminhos do Divino, um Olhar sobre a Festa do Espírito Santo em Santa Catarina (Editora Insular, 2007), Lélia Nunes dá agora à estampa Na esquina das Ilhas (Florianópolis, 2011) que reúne um conjunto de textos publicados desde 2004 e que andavam dispersos por revistas e jornais, havendo ainda outros inseridos no blogue Comunidades (de que é co-autora com a professora Irene Maria Blayer, jorgense radicada no Canadá) do site da RTP/AÇORES.
Com apetecível capa de Arlinda Volpato e avisado prefácio do escritor Daniel de Sá, o livro, dividido em duas partes, “Ilhas de Cá” (a ilha de Santa Catarina) e “Ilhas de Lá” (as ilhas açorianas), é atravessado pelos registos da crónica, da memória, do ensaio e da crítica literária.
O sortilégio das ilhas habita Lélia. Daí que a sua escrita emane uma profunda ternura, já que as ilhas evocadas são território de magia, beleza e mistério. A autora capta sensações, impressões, emoções, ideias e estados de alma que lhe deixam esses espaços ilhéus.
Na primeira parte de Na esquina das Ilhas, Lélia fala, com paixão, de Florianópolis, “cidade faceira e mágica”, e desvenda a alma catarinense, lançando olhares históricos sobre o Estado de Santa Catarina, sem nunca descurar as raízes culturais açorianas, estabelecendo pontes, conexões e paralelos entre duas vivências e duas maneiras de ser e de estar.
Deste modo, a autora tece considerações sobre o substrato açoriano sobrevivente no litoral catarinense, com especial incidência para as expressões culturais identitárias: as celebrações do Espírito Santo, as crenças religiosas, as festas profanas, as crendices populares, os rituais simbólicos do quotidiano catarinense e açoriano… Lélia recorda o grande Franklin Cascaes, escultor, folclorista e escritor, dá a conhecer poetas, escritores, ensaístas e historiadores do espaço catarinense (João da Cruz e Sousa, Virgílio Várzea, Juvêncio de Araújo Figueiredo, entre muitos outros) e evoca artistas plásticos incontornáveis: Semy Braga, Vera Sabino, Willy Alfredo Zumblick, Victor Meireles, entre outros.
Na segunda parte da obra, temos uma Lélia viajante pelas ilhas dos Açores, em plena celebração jubilosa da vida, na partilha de afectos, no reencontro das amizades.
Sentada a uma mesa do Peter Café Sport, na cidade Horta, logo o pensamento da autora voa para o bar do Arante, no extremo sul da ilha de Santa Catarina. Tendo como livro de referência As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão, Lélia vive a felicidade de dias luminosos com “a ilha em frente”, espia a escrita de autores açorianos e sobre eles fala apaixonadamente, já que se identifica com a literatura de expressão açoriana: Daniel de Sá (o tal que escreveu que “Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”), Vitorino Nemésio, Emanuel Félix, Eduíno de Jesus, João de Melo, Onésimo Teotónio de Almeida, Urbano Bettencourt, Dias de Melo, entre outros. Aprecia os ensaios de Mayone Dias, Vamberto Freitas e Diniz Borges. Gosta incondicionalmente da pintura “lírica e onírica” de Tomaz Borba Vieira. Escritora de inspiração cristã, vive, em Ponta Delgada, a experiência avassaladora de assistir à procissão do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
Este livro é também fruto da correspondência internética que a autora mantém com o que chama de “Irmandade Atlântica da escrita”. E, nesta matéria, muito me deliciei a ler “Os CÊS”, quadras que Daniel de Sá escreveu para Lélia sobre o “c” mudo em português europeu “que perdeu a validade” com o Novo Acordo Ortográfico. Um texto de antologia!
Um Colóquio realizado na ilha da Madeira é pretexto para Lélia falar de experiências e vivências, com floresta laurissilva e levadas à mistura, e uma muito oportuna evocação à escritora Maria Aurora Carvalho Homem, falecida em 2010.
Na esquina das ilhas terá, por assim dizer, dois propósitos: dar a conhecer as vozes insulares que se fazem ouvir deste e do outro lado do Atlântico; e consolidar dois mundos geograficamente tão distantes mas culturalmente tão próximos.
E tudo isto nos é dado num estilo gracioso e numa escrita elegante e intimista. Leiam Lélia Nunes, catarinense do litoral sul, a lúdica cronista viajante que escreve com luminosa clareza.
Eis a Lélia no seu melhor, uma Lélia vintage a merecer, por isso mesmo, a nossa melhor atenção.
Victor Rui Dores