O mundo que Genuíno Madruga viu
Há dias entrevistei Genuíno Madruga no velhinho programa “Daqui e da gente”, que mantenho há mais de trinta anos no Portuguese Channel, de New Bedford, Massachusetts. A conversa teve de ser alargada para um segundo programa, num total de uma hora. Obviamente que ouvira falar dele, como acontecera com tantos outros convidados. Por sinal lera alguns relatos das suas viagens e vira imagens na comunicação social e na Internet. Apesar disso, sabia pouquíssimo sobre o homem, mas aprendi uns rudimentos pouco antes da entrevista: pescador do Pico, cresceu no meio de barcos entre o Pico e o Faial. Passou lesto para a pesca em barco a motor, e no porto da Horta contactava com navegadores à vela estrangeiros que lhe transmitiram o bug. Bebeu com eles conhecimentos sobre navegação à vela, geografia do globo, e línguas, sobretudo inglês e francês. Na sua faina de pescador aprendeu a amar e a conhecer, mas também a ter sério respeito pelo mar. Muito cedo jurou que ia adquirir um veleiro e faria uma viagem à volta do mundo.
Não preciso de contar tudo porque agora está escrito em livro. O Genuíno veio aos States e Canadá lançar O Mundo Que Eu Vi (Ponta Delgada: VerAçor, 2011), sobre a sua segunda viagem à volta do globo em solitário. É que, como jurara a si próprio em jovem, comprou na Alemanha um veleiro e, pouco tempo depois, lançou-se na sua primeira viagem em torno do mundo, sempre em solo. Tomou o caminho mais fácil via Canal do Panamá, todavia isso deixou-o insatisfeito e não descansou enquanto não se aventurou a nova viagem, desta vez a sério, pelo Cabo Horn, nos fundilhos do Chile.
Homem do Pico, marinheiro de rosto queimado e rijo, ágil, rápido no raciocínio e com mais verbo do que o cliché atribui aos picarotos, simples mas frontal, não palavroso, responde sem rodeios nem quaisquer peneiras. Cabeça fria na análise dos problemas e contratempos com que se confronta e arrojado denodo frente ao mar, que ele reconhece poderoso e amedrontador, mas sobre o qual se move com perspicácia e atenção intensa, calculando os riscos e só se atrevendo a avançar quando sente que pode. A determinação, a persistência com que se agarrou a um sonho e o alcançou, sempre com os neurónios assentes e direccionados todos na realização do grande objectivo são marca que ressalta logo no início da conversa com ele. Resumiu-me os 22 meses da sua aventura com notável propriedade de linguagem usando termos e expressões como “sucumbir”, “explícito”, “é a minha percepção”, “inóspito” (referindo-se ao Cabo Horn, por exemplo) e falou com saber de experiência feito, dos lugares por onde passou, das suas lembranças de momentos duros ou eufóricos, de gentes das mais variegadas culturas, de Charles Darwin, dos museus de Paul Gauguin e Jacques Brel (este conhecera ele pessoalmente na cosmopolita Horta), sempre com um à-vontade e uma naturalidade desarmantes. A cada pergunta que lhe fazia desatava numa resposta que poderia prolongar-se para encher um programa inteiro de conversa. Momentos fortes foram os da descrição da passagem no Cabo Horn com ventos e correntes adversos, temperaturas gélidas e mar agitado. Ou então já na ponta final, tendo largado de S. Luís do Maranhão, no Brasil, rumo ao Pico, aonde prometera chegar no dia da festa do Espírito Santo. Uma violenta tempestade quebrou-lhe o mastro. Quiseram oferecer-lhe apoio, ir buscá-lo, outros alvitraram que voltasse para trás a fazer reparações (o mundo açoriano e lusófilo internacional foi sempre seguindo a viagem pela rádio e Internet), mas o Genuíno analisou a situação a sangue frio e decidiu: a minha rota é para o Pico. Improvisou uma vela ridícula, viajou mais devagar, e por isso falhou por uns quantos dias a palavra jurada de chegar no dia de festa, mas conseguiu completar a viagem e entrar triunfalmente na ilha natal. Quando lhe perguntei: Quantas vezes, nos momentos mais duros, disse para consigo: “Que grande parvo eu fui em me meter neste projecto!”, a resposta veio forte e fulminante: Nunca!
E, no entanto, um homem desses, velho lobo marinho (deu ao seu veleiro o nome de Hemingway, porque ficou marcado em jovem pela leitura de O Velho e o Mar), enfrentou momentos de não conter a emoção e não revelou qualquer embaraço por isso, nem procurou escondê-la. Ao narrar a sua prolongada paragem em Timor, que incluiu um encontro com o Presidente Ramos Horta, descreveu-me a despedida. Ramos Horta, que já o tinha recebido em sua casa, cancelou tudo na sua agenda presidencial e foi ao porto despedir-se dele chegando mesmo a entrar no “Hemingway”. No adeus, ofereceu-lhe um terço que lhe tinha sido doado pela irmã Lúcia. Genuíno, o durão que enfrentou os revezes do Cabo Horn e o mastro partido em S. Luiz do Maranhão que lhe ia quebrando definitivamente o sonho, o intrépido marinheiro que chegou a estar quarenta horas sem dormir nem comer, apenas a água porque não podia largar por um momento que fosse a condução do barco para abrir sequer uma lata de conserva, não controlou as lágrimas que lhe assomaram aos olhos e os tingiram de rubro, enquanto a voz se lhe embargava. Por menos afeição que se tenha pela Cova da Iria, impossível ficar-se insensível perante um homem desta estirpe.
No dia seguinte à gravação desses dos programas, houve lançamento do livro no belo Whaling Museum, em New Bedford, que os emigrantes traduzem em l(USA)landês para “Museu da Baleia” e que deveria ser “da Baleação”. Muita gente no auditório. O Genuíno, que na TV já me aparecera de fato e gravata, estava ali numa espécie de camisa de forças porque aquilo não era propriamente o mar e o seu “Hemingway”, embora ainda assim conseguisse extravasar naturalidade porque ele, não sendo particularmente alto, é vertical como o seu Pico.
Depois dos paleios da praxe, o Genuíno entrou em cena. Falou em inglês com à-vontade e depois passou a português. Pôs-se a manusear o computador e fez desfilar imagens num powerpoint seleccionadas das 20 mil fotos que fez. Um festival de cor, de diversidade, e até de humor também, saltando de Cabo Verde para Santa Catarina, no sul do Brasil, e de lá para Buenos Aires, Montevideu, Terra do Fogo, ilha de Horn, depois por ali fora de ilha em ilha, de continente em continente, eu sei lá, Galápagos, ilha de Páscoa, Polinésia, Samoa, Darwin, Timor, Bali, Ilha de Rodrigues, Maurícias, Durban, Cidade do Cabo, ilhas de Santa Helena e Fernando Noronha, São Luís do Maranhão, nomes e estórias saltitando-lhe entre os dedos como quem vai ali a S. Jorge e à Graciosa e já volta mais logo para tomar um gin no Peter da Horta. Fotos em abundância, muitas excelentes, algumas magníficas e ele, genuíno, ali como quem estivesse apenas a folhear um album, unassuming, sem nunca se dar ares, a desfiar estórias na mais serena das calmas, enquanto as fotografias desfilavam num ecrã gigante e o auditório seguia de olhos colados na tela.
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Onésimo Teotónio Almeida