OURO, INCENSO E MIRRA
João de Melo (*)
Na noite em que me levaram a conhecer o Menino Jesus, eu era ainda um puro-sangue de Deus e tinha a espirituosa e rosada figura do anjo. Ao contrário do que me acontece agora, possuía um sono telúrico, em parte marítimo e subterrâneo, o qual absorvia o meu corpo e a minha natureza, a ponto de a ambos fundir com os materiais da criação do mundo. Com a pedra, a terra e a raiz dormia – e era casa, horta e árvore à beira do caminho. Nos ventos do mar e no fogo que vinha do interior da terra eu me soltava, para correr sonhos, nuvens e paisagens. Por isso, havia em mim o espírito dos pássaros, o instinto do cão e os ossos aéreos do lobo, e ainda a luxúria da serpente. Crede que também era peixe, às vezes: um fio invisível de mar prendia-me nas cordas desse meu sono, feito de água, abismo, trevas, esquecimento.
Nessa noite do meu Menino Jesus, clamavam sobre nós os sinos e os ventos ciclónicos da ilha. E um sussurro apressado, como de fadas, sismos ou suspiros de defunto, passava no murmúrio da muita gente que então descia as ruas, embrulhada no frio e tendo por destino todas as igrejas dos Açores.
Nunca soube por que motivo chamavam Missa do Galo a essa espécie de tumulto nocturno; um tumulto estranhamente caótico e frenético, a um tempo divino e profano, que levava as mulheres a pôr fora da cama as suas crianças, a descer com elas a rua à pressa, todas muito curvadas, envolvidas pelo cheiro a naftalina dos seus xailes; nem por que razão os homens pareciam, nessa noite, ainda mais pequenos, agachados ao peso dos seus negros chapéus de feltro. Sei que levavam pela mão meninas de bandós e que as fitas de cambraia disfarçavam a pobreza dos seus vestidinhos de chita. Mas já então elas, essas meninas porosas e franzinas, ostentavam o orgulho altivo e magnífico de todas as virgens. Nós, rapazes, íamos muito mais modestos do que elas: navegávamos enquilhados nos gabões de estamenha, herdados dos irmãos mais velhos ou mesmo dos idosos que se tinham ido embora para Deus. Estremunhados, compondo à pressa as fraldas da camisa ou atando os aflitos suspensórios das calças só dos domingos, grunhíamos protestos contra as mãos que nos acachapavam os marrufos rebeldes – cabelos enriçados por mechas resistentes aos dentes dos grandes pentes castanhos (ou brancos, de osso de baleia) que mais pareciam forquilhas.
Conheci-O de joelhos, a meio da Missa do Galo – estando eu prostrado sobre a grade onde o povo se ajoelhava para tomar a comunhão, no meio de uma enorme fila de pecadores. Padre Correia, o irado, o de olhos sempre rochosos (não me lembro se azuis, se cor de tabaco) e coração inflamado como o lume, trazia-O numa cestinha de vime. Andando de lado como os coxos, por dentro da grade, estendia-o num gesto mecânico, pondo-o ao alcance das pessoas, e dava-o a beijar de boca em boca. Compreendi então que o seu balbucio de náufrago, feito em latim, era a voz e também a profecia da graça de Deus. Logo atrás, tiniam na bandeja do sacristão moedas convulsas, as quais giravam por vezes no bronze como os piões – e era quando aquele magríssimo e desventurado acólito eclesiástico, afundado como um órfão numa excessiva opa cor de vinho, zelava, de olhos arregalados, por esse tesouro subtraído à nossa pobreza. Ele era o guardião das esmolas que ali simbolizavam o ouro, o incenso e a mirra dos Reis Magos e de quantos tinham vindo de longe e do fundo da noite para O adorar.
No momento em que me preparava para beijar o Menino Jesus, veio-me a clarividência desse momento perfeito da minha infância. Toda a gente vive instantes eternos, feitos porém à sua medida. Em mim, a aparição tão súbita do Menino converteu-se num tempo de glória e gratidão para toda a vida. Num repente – porque estas coisas sentem-se, vivem-se, mas não podem explicar-se por escrito, pois nunca mais se repetem – compreendi que também em mim existia uma relação muito antiga, uma espécie de atracção magnética ou apenas recíproca, ente o divino e o humano. O caso é que o Menino Jesus parou à minha frente, abriu-me os braços, devolveu-me a ternura de quem esperava muito mais do que esse beijo tosco e atabalhoado, ao qual me instigavam a pressa e o sorriso plácido do padre Correia. Tratava-se de um sorriso claramente dividido: de um lado, estava, ainda e sempre, uma espécie de bispo irado e desdenhoso, cujos sermões, nos domingos de missa, levavam velhos e mulheres ao pranto dos arrependidos eternos; no outro lado dele, persistia a avareza, a cobiça de um olhar que censurava as moedas que tiniam no bronze: eram moedas negras, modestas, dinheiro da nossa pobreza devota, mas avolumavam-se na bandeja mal segura pelos dedos trémulos daquele cúmplice que em segredo se ungia também da santíssima e reverendíssima prosperidade eclesiástica.
E então, tendo eu ficado frente a frente com o Menino recém-nascido, Menino esse que renascia, ano após ano, ao som dos ventos e dos sinos natalícios, creio tê-lo reconhecido. Tinha afinal os mesmos olhos azuis, o sorriso pronto, o inconfundível tom rosado das maçãs do rosto, o traçado forte da boca e o cabelo negríssimo, muito denso, de cada um dos meus irmãos mais novos. Ele era, apenas e só, um qualquer de nós, talvez mesmo, quem sabe, o próximo bebé da família: nascíamos com uma nudez em tudo semelhante à d’Ele; filhos da mesma paixão secreta; consagrados também ao destino dos astros e da terra. Além disso, comoveram-me logo a pequenez parda, de pombo torcaz, e a sua nudez parcialmente oculta pelo manto bordado na ourela e que as mulheres erguiam a medo, com os dedos suados de todos os devotos. Vendo elas o esplendor de uma tal perfeição, tornavam-se subitamente nervosas e iam pousar naquele corpinho um beijo áspero, às vezes sôfrego, outras vezes mole, mas sempre molhado. Decerto que o faziam com algum excesso de volúpia, porquanto padre Correia, o irado, o de olhos azuis ou cor de tabaco, abria mais um milímetro do seu sorriso de cónego e apressava-se a limpar a saliva dos beijos a um pano alvíssimo, vindo do altar, do sacrário, do cálice e da sagrada comunhão.
Passaram os anos e os dias, e comigo todos os destinos se cumpriram: o coro sobre o silêncio dos conventos, com os seus extenuados cantos gregorianos, as missas, as metralhadoras da guerra, os livros, as horas e os filhos. Agora Deus é uma presença fria na minha vida. Não sobra em mim uma idade precisa para definir e reaver a fé antiga. No já longo e conturbado fluir da minha idade, tentei sempre, ainda que em vão, regressar ao tempo do ouro e dos mitos; acreditar que o Menino Jesus passaria de novo ao alcance da minha boca, para voltar a parecer-se comigo e com os bebés da família. Por isso vos digo: guardai bem tudo aquilo que vos pertence. Que viva em vós a alegria de terdes nascido para a vida e para o sonho, e que se cumpra em vossos corações a festa dos sinos, tão eternos eles sejam como a infância e como o vinho. Em última análise, deixar vir outra vez o Menino Jesus na criança que está sempre em renascimento e em renovação dentro de cada um de vós. Sobretudo, pensai como eu: estive, estarei sempre perante Ele, aquele Menino rosado, único, afinal tão múltiplo como a humanidade inteira. Sei que Ele não cresce, não muda, não envelhece. E também não há-de nunca morrer, pois viverá por mim e muito para além de mim – o tão querido, o nunca renegado Menino Jesus da minha alma.
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(*) João de Melo:
Um dos grandes nomes da literatura portuguesa contemporânea é açoriano,nascido na freguesia da Achadinha,Concelho do Nordeste(1949),Ilha de São Miguel. Destaca-se como ficcionista, ensaísta,investigador, crítico literário,poeta e cronista. Conselheiro dos Assuntos Culturais na Embaixada de Portugal em Madrid (2001-2010).
João de Melo iniciou a sua vida literária, em 1975, com o livro Histórias da Resistência.O romance Gente feliz com Lágrimas o consagrou tendo recebido inúmeras premiações: “Grande Prémio do Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores”, “Prémio Eça de Queirós da Cidade de Lisboa”, “Prémio Cristóbal Colón das Cidades Capitais Ibero-Americanas”, “Prémio Fernando Namora” e “Prémio Antena 1 de Literatura” para o melhor livro do ano. Gente Feliz com Lágrimas, foi adaptado ao teatro, à televisão e ao cinema. Está traduzido na Espanha, França, Itália, Alemanha, Holanda, Bélgica, Estados Unidos, Áustria, Roménia e Bulgária.
Produção Literária mais recente: O Segredo das Ilhas (2000, viagens), Antologia do Conto Português (2002), As Coisas da Alma (conto, 2003), Uma antologia de dezoito dos seus contos foi publicada em Espanha com o título de Crónica del principio y del agua y otros relatos (2005). Mar de Madrid (romance, 2006) e ainda: A Nuvem no Olhar (antologia pessoal) e O Vinho (com desenhos de Paula Rego). Apresentada em Madrid a edição espanhola de “Autópsia de um mar de ruínas” em Outubro de 2011.