Caro Onésimo:
Estou deslumbrada com a escrita do Fernando Aires. Mais uma vez dei por mim, a lamentar a minha ignorância. Conhecia-o apenas de nome e tinha-o como um intelectual da nossa terra. Mas nem sabia ao certo se tinha livros publicados, ou não. Nem tão pouco me recordava de o ter lido, alguma vez. Foi o Onésimo que me despertou a curiosidade para este autor. Sabia da sua amizade por ele, mas tamanho entusiasmo seu, não podia ser explicado apenas por esse facto. Algo mais haveria, certamente. Mas confesso, que nunca, em momento algum, imaginei tratar-se de alguém tão talentoso.
Quis a sorte, que numa das minhas deambulações pelas livrarias, encontrasse três volumes do seu Diário. Outros afazeres se interpuseram, porém, pelo que, só agora, tive oportunidade de os ler. Confesso que a paixão foi imediata. Li um volume praticamente de uma assentada. E fiquei maravilhada com esse escritor até agora desconhecido, para mim. Admiro-lhe sobretudo o imenso talento com que transmite os seus estados de alma. A enorme sensibilidade com que aborda os temas mais complexos, como o sentido da vida e da morte e de como “tudo é terrivelmente provisório”, mas também a mais banal das situações – ele vê beleza na trivialidade do quotidiano. Nos mais pequenos gestos, no crescer das árvores, no barulho do sacho na terra, na chuva, na mulher que atravessa a rua. Na descrição do tempo que os açorianos tão bem conhecem – “Daqueles dias mornos e quietos, com um cobertor de nuvens por cima”. E faz-nos o enorme favor de nos mostrar. Acho que aqui reside o mérito maior da sua obra – a generosidade com que partilha connosco o seu rico sentir. Mesmo quando nele perpassa alguma inquietude. Mas esse é o preço que se paga por se ver para além do óbvio e do banal.
O autor escreve muitíssimo bem – é um facto! Mas não foi isso que me apaixonou, verdadeiramente. Claro que também é importante. A forma poética como se exprime, o talento de transpor o leitor para o ambiente que o cerca, tudo isso é apanágio dos grandes escritores. Mas foi sobretudo o seu sentir, o que a sua escrita ecoa em mim, a similitude de alguns estados de alma que verdadeiramente me conquistaram. E a forma brilhante como ele os transmite.
Entendo-lhe bem a necessidade de ter opções, de não se sentir confinado a um lugar, a uma situação, como ele tão bem expressa numa entrevista a Vamberto Freitas. “Estar numa ilha é como estar num cais: fica-se perpetuamente à espera do primeiro barco que venha e nos leve, não importa aonde. Concretizar a viagem é outro assunto. O que importa é que apareça um barco, sinal de que se pode ir. O que é importante é ter esperança de.” Conta-nos do dilema que sente entre o ser e o não ser e da dor que essa aparente contradição provoca. Das suas insatisfação e necessidade de ir sempre mais além – “Como se a “verdade” estivesse perpetuamente noutro lugar”. Da sua inadequação na vida – ” Sou estrangeiro no tempo que me resta. Estrangeiro na terra e entre os homens. Estrangeiro no desassossego dos dias.” E até mesmo na banalidade do quotidiano, como tão bem ficou patente na descrição dos bailes carnavalescos da sua juventude. Do seu desajuste na alegria programada. Na sua solidão acompanhada.
A infância é evocada amiúde no seu Diário. Fá-lo sempre com grande afecto e com um profundo sentimento de gratidão para com a sua família. Perpassa contudo uma certa amargura pelos sonhos desfeitos, pelos desejos não realizados, pela perda da sensação inebriante de se ter a vida inteira pela frente – ” Minha doce, absurda, longínqua, sonhadora infância. Como te espantarias se visses em que me tornei.”.
Confessa-nos da sua necessidade de solidão, do seu desejo de se encontrar só, de se confrontar consigo. Mas também da dor que isso provoca. Mesmo quando é uma solidão deliberada – “Fui-me habituando, devagar, ao isolamento e agora custa-me menos estar só.” “…quando nos habituamos a estar sozinhos, nunca mais deixamos de estar sozinhos, mesmo quando temos companhia. Falam connosco, enchem o ar de som e de movimento. Interrogam-nos… Porém, ao fim de um tempo, começamos a perceber que o isolamento é uma espécie de libertação.” Como eu o entendo. Mas não se pense que Fernando Aires está apartado dos outros. Ele deixa transparecer, claramente, em toda a sua escrita, o enorme afecto que o liga aos amigos e à família, em especial aos netos que, sente, lhe perpetuam a existência.
Achei deliciosa a referência que ele faz ao cheiro das sacas da América – ” Os sacos chegavam, eram desatados, e logo se fazia uma festa com cheiro a América a encher a casa toda.”Também eu tenho esse cheiro gravado na minha memória. É inconfundível e muito emotivo. No dia do lançamento do seu O Peso do Hífen, o Onésimo ofereceu-me a (Sapa)teia Americana que a sua mulher tinha feito o favor de trazer dos States. Mal me encontrei sozinha, a primeira coisa que fiz foi cheirar o livro, em busca desse cheiro. Curiosamente, cheirava a América mas não de forma tão intensa como as roupas daquelas antigas sacas. Recordo-me de sorrir ao pensar que, se calhar, era por o Onésimo não ser um emigrante típico – o cheiro vinha camuflado pelas letras.
Gostaria muito de ter descoberto este escritor mais cedo. De ter tido tempo de lhe dizer da minha admiração por ele e pela sua escrita. Do prazer imenso que me deu lê-lo. E de como fiquei rendida ao seu talento. Sobretudo de lhe agradecer a enorme generosidade por tê-lo partilhado connosco.
A minha gratidão é também para com o Onésimo que, mais uma vez, me aproximou da minha terra.
Um grande e grato abraço
Ana