Floripa de calça curta
Revejo Floripa pela ótica de um “calça curta”, um [rapaz pequeno]. Entre os anos 1930 e 1960 a cidade era um jardim de casas avarandadas – e poucos edifícios térreos. Nossos três [Empire States] começavam a subir naquele canteiro em transição: o Hotel La Porta (1931), o edifício Ipase (1940) , o Querência Palace Hotel (anos 1950) e o edifício do Banco do Comércio – a “modernidade” dos anos 1960, despontando na cabeceira sul da Praça XV, já com os Beatles habitando o planeta.
Todos se conheciam na “aldeia local”, a antítese do mundo globalizado, previsto por Marshall McLuhan, um canadense que criou a “aldeia” sem fronteiras. Na Ilha, o que vigorava era a camaradagem universal, sob o código da convivência provinciana. Baile de debutantes era no Clube Doze. “Encontro dos brotinhos”, no Lira. Mas a cidade freqüentava os dois, em perfeita “enténte cordiale”.Torcer nas raias tinha três escolhas: o Aldo Luz, o Martinelli ou o Riachuelo. Vibrar nos estádios era uma rígida divisão por dois: Avaí ou Figueirense – um, identificado com o PSD, (o que se autoproclamava: “nunca foi nem será vencido”); o outro, vinculado à “eterna vigilância da UDN”.
Barbeiros de fim-de-semana chegavam às casas de família pontualmente às nove da manhã de domingo, armados de navalhas e máquinas de zerar calotas. Tratores de pinicar “hyléias” que ameaçassem cobrir as orelhas da rapaziada. Segunda-feira de manhã, na sala de aula, a circunferência pelada – presidida por uma moitinha no alto da testa – transformava-se em alvo perfeito para os risos e os “selos”, aplicados com a energia concentrada em três dedos.
O sol dos anos 1950 deveria ser o mesmo que hoje rebrilha sobre nossos telhados e janelas, nos queridos 286 anos de Floripa. Mas a atmosfera era muito mais “pura” e asseada. Os raios entravam nas bandeirolas altas das casas antigas, filtrando um facho de microcósmica poeira, enquanto os quintais produziam sons de gatos, cachorros, pássaros e galos carijós. Da rua, crescia o pregão do amolador de facas e tesouras, espécie que se extinguiu quase à mesma época dos carrinhos-de-cavalo.
O mundo era bem menos truculento – com a vantagem de que qualquer moleque tinha crédito para comprar fiado no armazém da esquina. Balas queimadas, marias-moles, pés de moleque, groselhas e “gazosões”. As carrocinhas de pipoca ofereciam outra atração: a [canja americana], que nada tinha de canja. Era uma espécie de puxa-puxa, bala dura e branca, recortada em retângulos.
A Floripa que hoje celebramos é a intemporal – a do hoje e a do amanhã. É a mesma ilha de tantas boas lembranças – aquelas que, no futuro, também descerão em ondas concêntricas pela memória dos jovens. “Boas” que começam a conviver com as más lembranças, infelizmente. A da superpopulação, a da imobilidade urbana, a da violência geométrica. Mas hoje não é dia de falar disso. É dia de pegar a [Ilha-Mulher] no colo e embalar uma canção de ninar.
Todos embalarão lembranças das primeiras décadas do terceiro milênio e louvarão “o tempo em que Floripa tinha apenas três pontes”.
E o Morro da Lagoa “ainda era verde”…
FIM.
Sérgio da Costa Ramos
23 de Março de 2012
(*) Crônica publicada no Diário Catarinense de 23 de Março e aqui reproduzida com autorização do autor.
______________________________________
(**) Sérgio da Costa Ramos,ilhéu de nascimento e de alma. Açoriano, por seus ancestrais terceirenses. É um dos mais festejados e brilhantes cronistas de Florianópolis,de Santa Catarina. Seus leitores se multiplicam por todo o Brasil e além fronteiras.
Uma pena vivaz a falar com propriedade dos usos e costumes, das mudanças e do desenvolvimento crescente da sua Ilha de Santa Catarina -“Ilha-Mulher” que tanto ama.
Sergio da Costa Ramos é um nome que honra as letras catarinenses. A sua fértil produção literária compreende as crônicas publicadas, diariamente, em sua coluna no Diário Catarinense e nos seus livros Sorrisos Meio Sacanas (1996), O Plano Surreal (1999), Rapsódias do Mundo Bin – Ou não confia nem no carteiro (2001), Costela de Adão – De um fiel às mulheres e a boa mesa (2007), Duas Violas Arteiras (2009, com Flávio Cardozo) e Piloto de Bernunça (2009) comprobatória da riqueza do seu labor diário da palavra, da escrita escorreita, de uma prosa inigualável que nos prende da primeira a última linha.