O rochedo que chorou
Não é comum que um jovem diga: “A F[r]onte da Juventude: Apagas o mundo dos meus olhos / Sem remorso, limpas-me a juventude da fronte / E vês o velho que te espera desde sempre / Sujo e imundo da vida que, sem piedade / Me fincou as sementes / Nas palmas rijas e lavradas das mãos”.
Pois esse jovem de 28 anos é João Pedro Porto, poeta português, açoriano da ilha de São Miguel, mestre em Psicologia Clínica. Seu livro de estreia, de onde saiu o poema acima, chama-se O Rochedo que Chorou, publicado pela Publiçor e que [ainda] não circula no Brasil. [Aliás, bem poderíamos rever o princípio de que não se escreve resenha se o livro não está disponível no mercado; hoje em dia, com o sucesso dos blogs, das páginas no Facebook, dos downloads livres, entre outras circunstâncias, temos de pensar que a literatura está em toda parte, sem territorialidades].
Trata-se de um livro híbrido, no melhor sentido da palavra, e condiz com uma vertente importante da literatura contemporânea. Esse hibridismo é representado pela multiplicidade de gêneros: ali há poemas, reflexões [“Sou Antiquado. Acho que é a minha característica mais antiga porque, quando nasci, chorei. E isso hoje em dia está a tornar-se coisa antiquada”], contos tradicionais, minicontos e outros escritos indefiníveis, mas dotados da mesma qualidade interrogativa ante o mundo. Impressiona, também, a amplidão do universo de conhecimentos, que transita pela filosofia “existencial”, pela psicologia, pela literatura, pela mitologia [como em “A Fuga de Ítaca] e pela História. O autor move-se com facilidade entre épocas e estilos, mas sem agredir o leitor com erudições inúteis e ostentatórias; ao contrário: é uma erudição a serviço de uma leveza conceitual, que nos captura pela emoção.
Diz-se que todo escritor jovem fala de si mesmo; pode ser, mas a realidade desta cultura pós-moderna e ególatra é que também os anciãos falem apenas de si mesmos. Assim, não é pecado algum que João Pedro Porto use um “eu” persistente como o badalo de um sino. A diferença está que este “eu” só existe em ação relacional, isto é, em diálogo com o outro. Nunca é uma fala estéril ou intransitiva. Poder-se-ia dizer que é uma fala construtiva, mas sem qualquer conotação piegas ou pedagógica. Eis um escritor completo, que tem muito a ensinar à sua geração e à geração futura, inclusivamente com textos que, aproximando-se da lira romântica, subvertem-na, como “Volver: Voltarás / do fundo dos rochedos / lavrando a minha alma / De saudade e agonia // Hoje és sonho e pensamento / Ontem mar na minha face / Rebentarás forte e fria / Amanhã, / No calor do meu peito”. O jogo de oposições sonoras, as quase-rimas que mais sugerem do que dizem, fazem deste poema uma espécie de summa do eu-poético do autor, que gosta de surpreender seu leitor com esses contrastes, erigindo-os à instância de um programa estético.
João Pedro Porto. Gravem esse nome. Muito ouvirão falar dele. E falar como um escritor que vai à raiz do humano, capaz de construir uma obra duradoura, acima das circunstâncias do [seu] tempo. E essa é a marca da verdadeira obra de arte.
Luiz Antonio de Assis Brasil (*)
(*) Natural do Rio Grande do Sul, Luiz Antônio de Assis Brasil é um dos grandes nomes da literatura brasileira e emérito Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Atualmente, o escritor é o Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.