“Que faz um poeta na guerra?”
(A propósito de África Frente e Verso, de Urbano Bettencourt)
Que faz um poeta na guerra?… Vê matar e morrer. E talvez mate ou morra também. Como Pedro, que uma mina matou tão completamente que só lhe enterraram a alma. Mas, se o poeta não morre, pode regressar sem alma. Ou trazê-la tão mudada que não a reconheça como sua. Ou que não se lha reconheça.
“Frente e Verso” não é um livro de poesia de versos apenas. E nem toda a poesia que está nele é feita com palavras. O primeiro poema, o que primeiro se vê, que se sente, que nos surpreende e enrodilha a alma, ou o que dela nos reste, é a capa. Do outro Urbano, o pintor. Um coração em forma de África. Com cores de tristeza. Como o último instante de penumbra antes que a noite a apague. É a frente. Que na guerra significa lugar de combate. Na contra-capa, outro coração em forma de África. Ardendo em sangue a toda a volta. É o verso, que no título quer também dizer poesia.
A nossa imaginação teima em crer que a África é uma terra de sonho. Fica sempre bem na fotografia. Mas vendo-a de perto, sentindo-lhe o hálito quente do entardecer, talvez se perceba que o que nela mais anoitece não é o dia, mas a vida. Se os sons deixassem rasto como certas passadas, África seria um coro quase infinito de prantos. E um dos maiores naipes desse coro teria regência portuguesa. Milhões de escravos. Milhares de mortos em guerras de ocupação mentirosamente ditas de libertação.
Urbano, o poeta, esteve numa destas. Uma das derradeiras desgraças do Império. Trouxe-se a si na bagagem do regresso. Já não foi mau… E trouxe também o amor por aquela terra. E por aquela gente contra a qual o armaram. Amou-lhe a beleza para além do sangue. A felicidade possível para além do horror. E tem-no dito em prosa-quase-poesia ou em poesia-simplesmente. Em “Frente e Verso” estão ambas juntas.
A beleza na poesia é muitas vezes triste. E não há outra neste livro de remorsos alheios. Que quem deveria sentir não sente. Bastariam dois dos seus versos para estar perfeita uma elegia por África. A África que tanto quisemos que a destruímos. Que continuámos a amar desesperadamente depois de termos percebido que já nada valeria a pena. A África dos homens-nada e das mulheres coisas. Mas o remorso só teria sido útil se houvesse precedido o crime.
Essa África mulher, essa África menina, a que está para além dos embondeiros e dos poentes vermelhos, prefiguração do sangue, resumiu-a o Urbano nesses dois versos. Ou disse-a toda inteira. Só isto: “violada pela milésima vez/ e sempre virgem”.
Daniel de Sá