De cada vez que me sento num estádio, ou me ponho em frente ao televisor, ou me curvo diante de um transístor, não é aquele jogo que vejo, não é aquele jogo que ouço. Estou em 1989, faltam dez segundos para Fernando Gomes atirar à barra o penálti que impedirá o Sporting de bater o Nápoles de Maradona – e aí vai ele, Gomes, com a bola na mão, caminhando entre o círculo central e a grande área, o olhar pregado na relva como quem sabe que lhe caberá a ele a dúbia honra de glorificar a nossa derrota. Estou mais longe ainda, aliás: estou no Verão de 1987 e Vítor Damas anda aos gritos em cima do risco de golo, a correr de um lado para o outro da baliza e a fazer exigências à descoordenada barreira do Sporting, enquanto Dito, Nunes e Diamantino parecem discutir quem marcará o livre directo cedido instantes antes por Ralph Meade – e já aí está Diamantino, partindo para a bola à falsa fé e ali mesmo começando a desequilibrar, de modo ao mesmo tempo infecto e irremediável, a final da Taça de Portugal, a nossa primeira vaga oportunidade de compensar cinco anos sem títulos de qualquer espécie (isto num tempo em que cinco anos sem títulos de qualquer espécie ainda eram uma tragédia, note-se), e que, não por coincidência, morreria aos pés do Benfica.
Ao meu lado está o meu pai, ainda jovem. Olho-o de soslaio, como que voltando a tentar desvendá-lo. Todos os dias o vejo sair e regressar a casa, com a sua impecável farda azul – e é quase tudo. Não sei ainda o quanto o admirarei no futuro. Não sei ainda o papel que terá no meu olhar sobre o mundo a sua honestidade férrea. Não faço ideia sequer de que está já plantando em mim a semente renovadora (e até um pouco maligna) da auto-determinação, incutindo-me a urgência de suplantar o destino que me parece guardado. Ou talvez comece já a intuir alguma coisa, não sei. Estamos na cozinha fria dos Açores. Lá fora, o silêncio. Não passam automóveis na rua em dias de futebol – os próprios melros parecem suspender o seu desenfreado canto quando joga o Sporting. Há como que um estertor de ansiedade por dentro do meu pai. Ondas peristálticas percorrem-lhe o pescoço, o peito, o estômago – e, no entanto, nem um esgar, nem um salto incontido, nem um gesto de impaciência. Até que se confirma que perdemos. Perdemos sempre, na verdade. Sempre que é importante. E então ele ergue-se silencioso, tossica a sua tosse tímida e nervosa, como que dando por concluída a tarefa mais irrelevante e aborrecida do dia – e desaparece lá para trás, para o quintal, onde passará a noite com um maço e um escopro, abrindo buracos sem razão aparente, e que no fim-de-semana seguinte se ocupará de tornar a tapar, assim o Sporting volte a perder.
Ao significado de tudo isto, demoro ainda muito tempo a percebê-lo. Nos quinze anos seguintes haveremos de viver a dois mil quilómetros um do outro – e mesmo quando, a dada altura, uma parte do meu ano começar a ser vivida não a dois mil quilómetros dele, mas a cem metros apenas, a distância entre nós demorar-se-á a mesma. E, contudo, continuaremos a ter o futebol. Teremos sempre o futebol. Mesmo que não encontremos mais nada sobre o que falar um com o outro, haverá o Sporting. Às vezes ainda tentamos fugir-lhe. Fugir-lhe, não: transcendê-lo. Não há razão para fugirmos do Sporting, afinal: o Sporting sempre nos partiu o coração, mas o que lhe devemos é já muito mais importante do que a simples alegria. Tentamos diversificar a conversa, digamos. Falamos do trabalho. Dos afazeres. Da crise. Da meteorologia – e, enfim, outra vez do Sporting (ou da selecção nacional, durante as grandes competições internacionais), agora menos frustrados com o fracasso dos outros assuntos do que gratos por aquele maravilhoso lugar a que poderemos voltar sempre. E, a certa altura, já nem é sequer uma possibilidade de comunicação, aquele jogo: é uma declaração de amor. Como, se calhar, se limitou sempre a ser: apenas a única maneira que encontrámos os dois de dizer um ao outro que nos amávamos, sem termos de efectivamente utilizar essas palavras.
O pai. Julgo que não me engano se disser que a idade adulta começa no momento em que um homem é pela primeira vez capaz de admirar o seu pai. O meu pai. Tenho a certeza de que, por muito que me tivesse esforçado, e ainda que o houvesse mesmo feito, eu jamais teria conseguido ser durante cinco minutos metade daquilo que ele foi ao longo de toda a vida, sem uma hesitação, sem uma ressalva, sem outra intenção que não apenas sê-lo. E que ainda é, aliás. Muitos escritores fizeram questão, algures ao longo da vida, de homenagear o pai. Fizeram-no muitas vezes a título póstumo, outras tantas quando ele se encontrava no leito de morte. Fizeram-no como forma de estender o braço, de recuperar o tempo perdido, de vencer a distância. Toda a literatura é isso, provavelmente: o impulso de vencer a distância, a irredutibilidade desse impulso. A mim, o momento de fazê-lo sobreveio-me talvez mais cedo do que a outros (embora mais tarde do que a muitos também). Chegou quase como uma epifania, sem se anunciar, quando eu sabia já que queria falar por uma última vez de futebol, mas ainda não porquê. E chegou avassalador: tomou o texto nas mãos e foi por aí fora, instrumentalizando-nos a todos, as pessoas, os lugares, os objectos, a rotinas, os cheiros – todos reduzidos a não mais do que ferramentas, como se a nós próprios não nos restasse mais do que abrir buracos sem razão aparente, talvez apenas para que pudéssemos fechá-los mais tarde, ainda que de novo por nenhum motivo que não o de manusear buracos.
Ao livro que resulta desse exercício decidi chamar-lhe “Os Sítios Sem Resposta”. A vida, se alguma vez puder ser reduzida a um sentido só, não passará provavelmente disso: de uma deriva pelos espaços que nada têm para dizer-nos de volta, da procura de um lugar a que possamos chamar nosso, do desorientado mas furioso caminho de regresso a casa. Mas, sobretudo, foi ao lado do meu pai que eu li pela primeira vez esse verso, esse maravilhoso poema de Tolentino de Mendonça que eu nem imaginava ainda roubar. “Regressamos a uma terra misteriosa/ trazemos uma ferida/ e o corpo ferido/ imprevistamente nos volta/ para margens mais remotas// (…) para além do jogo das nossas defesas/ qualquer coisa interior/ a intensa solidão das tempestades/ os campos alagados,/os sítios sem resposta// o teu silêncio, ó Deus, altera por completo os espaços.” Era sábado, eu estava à beira da mais importante e dramática decisão da minha vida (um momento puramente revolucionário, talvez, mas isso agora é o menos) e tinha por acaso o meu pai a meu lado, em Lisboa. Por acaso, não. De maneira nenhuma por acaso: alguma coisa nos dissera que devíamos estar juntos naquele dia, naquele tempo – alguma coisa dentro de nós nos encaminhara para ali. Passámos a tarde juntos, em silêncio, deambulando pela casa. Foi aí que eu o li. “Silêncio.” E então, sim, entrámos no meu Smart. Abrimos o tejadilho. Pusemos um disco de funk – e dirigimo-nos para Norte.
O Sporting, naturalmente, perdeu. Se ganhasse, conquistaria também o campeonato, pondo fim a novos quatro anos sem títulos de importância alguma. Durante mais de uma hora, o Sporting em cima deles. Ataques pela esquerda, ataques pela direita, determinação defensiva, resiliência. O Sporting comovente, como tantas vezes é o Sporting, sobretudo se a caminho de mais uma bela derrota. Pelo menos, eu recordo-o assim: abnegado e comovente. Até que, aos oitenta e quatro minutos, um pontapé longo do guarda-redes adversário. Para além do jogo das nossas defesas, qualquer coisa interior. O corpo ferido. Dois toques, uma triangulação – e nós reconhecendo já aquilo, aquele ritmo, aquela melodia. O silêncio. A intensa solidão das tempestades, os campos alagados, os sítios sem resposta. Um remate – e, pronto: golo do FC Por
to. O teu silêncio, ó Deus – o teu silêncio altera por completo os espaços. Golo do FC Porto e, de novo, o fracasso. Mas, de novo também, não apenas meu. Não apenas dele. Nosso. O estádio atónito, insultos trocando-se entre adversários, murros digladiando-se entre amigos. E nós ali. Um ao lado do outro. No silêncio de sempre – voltando à cozinha fria dos Açores, ouvindo outra vez suspender-se o canto dos melros e, enfim, dispersando, ele para o escopro com que abriria buracos pelo quintal, eu ao quarto da infância, onde poria uma almofada sobre a cabeça, para reprimir as lágrimas, e tentaria dormir até ao fim-de-semana seguinte.
Nenhuma literatura alguma vez fez isto por mim. Nenhuma poesia, nenhuma arte, nenhuma filosofia. Fê-lo o futebol. E dedicar-lhe um romance, bem vistas as coisas, é pequeníssima penitência para tão grande milagre.
(Publicado,originalmente, no “Diário de Notícias”,Lisboa)