e deste lugar (com bactérias-da-guarda e anjos-nocturnos)
e desta mesa, sentado nesta cadeira, posso ver-te vendo-me,
escrevendo num bloco preto de notas que te vendeu um indiano na feira as
coisas que achas curiosas, os
fantasmas que consegues ver mexendo-se por
detrás da cortina do dia. As palavras cruzam
os céus ao nível dos guarda-sóis da pastelaria e
misturam-se e confundem-se, mas é como se
já não importasse o que dizem ou o que deviam querer dizer ou
o que calam quando calam.
Profetas circunstanciais, no largo da igreja, ao fundo da rua que
nos traz de volta a casa.
então como agora, a razão que visitámos espera
numa loja de artigos usados. As senhoras do costume
vieram outra vez cá a casa, sabes, e
resolvi dar outros nomes a todas as palavras que conheço.
Quando acabares de corrigir os exames, de
fazer as listas, maquilhar os cansaços,
bate-me à porta e
vem ajudar-me nos próximos volumes da colecção.
Amanhã de manhã, virão outras armas para outra paz. Há
roupas novas nos guarda-fatos, outros cartazes publicitários nas avenidas dos
mesmos produtos. Promessas passageiras de uma perfeição de
bactérias.
As horas passam porque devem passar; todas as velhas perguntas dormem
sobre as alcatifas do sótão. As memórias não frequentam maternidades nem
hospitais. Nós
não somos já os cartazes semi-arrancados das paredes e semi-colados,
ainda. Já não.
e, desta mesa de café, podes ver-me vendo-te,
escrevendo neste caderno azul a tinta preta os teus olhos de milagre.
Continuas a ser a ideia genial. Todas as horas são tão absurdas
quanto as jarras com flores, todos os postais de felicitações
que mandámos. Tudo absurdo e certo. Há
carros parados em frente a casa, pequenos espaços por entre eles, onde
os pombos brincam a aviadores aliados, abrindo fogo
sobre a cidade inimiga. Saíram as crianças do colégio, mas
não todas. Alguns barcos desapareceram da orla. A ânsia dos radares.
Oiço a música dos mosaicos dos azulejos. O perfume
da estátua branca deitada abaixo
do pedestal. Os meus anjos,
os meus guardas-nocturnos, estão na sala a tomar um café que
lhes fiz, preocupado em que adormeçam numa destas
noites de vigília. Já leram todos os livros que escrevi para a estante e foram
muito críticos.
e desta mesa, em pé nesta cadeira, podemos ver-nos um ao outro,
por entre milhões de nomes, lugares e gigantes, e
podemos contemplar-nos e sorrir,
sabendo que fugimos da casa da razão para
habitar no rés-do-chão da loucura de
não fazer perguntas.
Alexandre Borges
(inédito)
Alexandre Borges (1980) escritor, argumentista, poeta, natural de Angra do Heroísmo, vive e trabalha em Lisboa.
Imagem de : http://www.fififlowers.com/2010/02/blue-chair-pink-table.html