JOÃO DE MELO E JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS:
o Mito do Salvador da Pátria
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Teresa Martins Marques
NO REINO DA MEDIOCRACIA
João de Melo publicou há 25 anos um conto intitulado «Postumografia de Pedro-O-Homem» (inserto no volume ENTRE PÁSSARO E ANJO-1987) no qual surge um personagem a quem foi dada a incumbência de salvar a Pátria e que é segundo Urbano Tavares Rodrigues, o melhor dos textos críptico-satíricos daquele volume.
João de Melo apresenta neste conto um Primeiro Ministro que nomeia para seu ministro das Finanças um homem de provecta idade, carregando às costas um fardo de honrarias e de gosma catarral, aliada a uma surdez à prova de carrilhão, garantia perfeita para nunca dialogar com ninguém. Este Primeiro Ministro que convida tão apagada figura para salvador das Finanças Públicas, é desde logo, satirizado pelo onomástico Mediócrito. Estamos claramente NO REINO DA MEDIOCRACIA para utilizar o título de um cáustico romance de Alberto Ferreira. Estamos claramente no reino da velha história de um Ministro das Finanças a quem incumbem de salvar a Pátria, mesmo que não tenha nenhuma aptidão especial para salvador…
Repare-se na forma subtil como João de Melo insinua o divórcio entre o exercício da política e o exercício da cultura adquirida nas obras literárias:
«Ora, toda a gente sabe que um chefe de Executivo não tem obrigação de cultivar o talento dos números, não é verdade? E também ninguém pode obrigá-lo a saber de Finanças ou de Bibliotecas, como diria o Senhor Dom Fernando Pessoa a propósito do Cristo. É apenas um político, e porque sim. E pronto!»
O mito do Salvador da Pátria fica desde logo comprometido por via paradoxística: Ora, se Jesus Cristo nada sabia de Finanças, como poderia este Messias salvar o Orçamento Geral do Estado? A citação em que se apoia João de Melo instaura subtilmente o princípio de denúncia do mito salvífico corporizado neste Pedro-O-Homem singular, atacado de pétrea surdez, que impede o diálogo com o homem plural – as vozes várias dos homens. A via da referência literária revela-se ainda interessante neste conto, enquanto confirmação do princípio da ironia que se fornece como pacto de leitura, pacto unilateral é certo, mas ninguém é perfeito, à excepção dos salvadores da Pátria.
O convocado é agora o nosso mestre supremo da ironia, o qual prefigura a exemplaridade protectora:
«De análise em análise, o político foi subindo de tom e acabou, nessa tarde dos pássaros pousados no silêncio da nespereira do quintal, por expor a Pedro o assombroso rol dos males desta pátria que estava sucumbindo aos interesses estrangeiros e para a qual se não vislumbrava uma sombra de esperança quanto ao seu futuro de Nação independente. Para mais em sua opinião, eram conhecidos os vícios dos portugueses quanto ao trabalho e ao consenso ideológico mínimo. Era só falar, só falar, só falar. Razão tinha o Eça para escrever o que escrito ficou, lá com o seu adjectivozinho, o seu advérbio híbrido e a sua frase sarcástica mas tão pesada na sua leveza subtil…»
PSICOLOGIA DA MACAMBUZICE
É agora o texto que procura a sua própria justificação tentando seduzir o leitor que, como sabemos, nem sempre deglute bem a sátira, o escárnio e o riso, provavelmente porque foi formado na catequese do Evangelho de São Lucas (6,25) que imprecava de dedo em riste: “Ai de vocês, os que agora riem, pois vão ter muito que lamentar e chorar!” Historicamente o tom apocalíptico tem encontrado sempre maior eco do que as risadas de Lutero que se ouviam no fim das longas ruas de Vórmia, ou as de Leonardo que faziam tremer os mármores, conforme nos conta ainda Eça de Queiroz no texto intitulado “A Decadência do Riso”, inserto nas Notas Contemporâneas, no qual verbera a falta que nos faz um tratado de Psicologia da Macambuzice Contemporânea.
Será esta senda queirosiana que João de Melo trilha em «Postumografia de Pedro-O-Homem» piscando o olho ao leitor, insinuando-se como uma visão para dentro e em torno do objecto – executando uma espécie de tomografia e autópsia do mito, escrita póstuma sobre o homem que fora a encarnação salvífica, o qual se deseja definitivamente morto e enterrado.
Por mais que se tente postumizar o mito do Salvador da Pátria este, como nas histórias de terror, ainda estrebuchará e levantará o dedo apocalíptico iniciando o ciclo do eterno retorno da desgraça atávica dos homens desistentes que alienam a sua vontade entregando-a nas mãos dos salvadores que, por vezes, nem a si mesmos se salvam, arrastando na corrente lodosa as pátrias infelizes que lhes serviram de berço.
Perante a vontade desistente do vulgo profano a necessidade do salvador torna-se um dado axiomático e, em presença de um axioma, todos os argumentos se curvam reduzidos à sua inútil condição. O salvador é por natureza aquele que tudo sabe de ciência infusa, a partir de uma indiscernível “essência sintomática”. Ouçamos o biógrafo, autor da Memória do Imortal Pedro, Herói da Pátria Defunta e Guardador dos Dizeres da Bíblia:
«Posto que nada lesse, com excepção do Texto Sacro, nem o ouvido se lhe tivesse apurado até ao augusto fim dos seus dias, ele tudo sabia e tudo escutava. Respirava o conhecimento a partir da essência sintomática. Diz-se que ouvia o silêncio por aqueles sobrenaturais carrilhões que parecem inspirar não apenas os santos mas também os génios e os profetas – os servos do Senhor.»
A SOLUÇÃO: VENDER O PAÍS
Outorgado que lhe foi por via infusa o dom da infalibilidade, qualquer acção do salvador é a mais justa, a mais elevada, a mais sensata, porque sim! Bem avisou S. Tomás de Aquino: – «Tende cuidado com o homem de um único livro!». De nada valeria, pois, discutir a decisão sapientíssima do Dr. Mediócrito, acolitado pelo seu augusto salvador e testa de ferro, quando trataram de vender o mar e as florestas aos americanos afim de purgarem a Pátria de tudo quanto cogitaram excessivo, logo inútil. Do diálogo, em forma de berro, do primeiro perante a surdez do segundo, respigo esta pérola argumentativa:
“Para que queremos nós tantos pinhais, se somos um país de incendiários? Para que havemos de manter um Serviço Nacional de bombeiros, se os que temos só estão desgraçando a Fazenda Pública?”
O excesso e o despesismo atingiam infelizmente níveis incomportáveis que reclamavam saneamento noutras áreas comprovadamente inúteis:
“Além dos poetas e dos cantores, havia o sol excessivo, as excessivas mulheres, o sobrenúmero dos padres, dos monumentos e das estátuas, os instrumentos de música, os rios, a chuva, o tempo das uvas e o tempo dos relógios. Com um pouco de imaginação e alguma prudência negocial, esses e outros recursos facilmente inverteriam o estertor da nossa perdição. Acima de tudo, preservava-se a independência».
Pronunciado o supremo argumento – a independência da Pátria – que o mesmo é dizer a soberania nacional, a originalidade da nação, a “arte de ser português”conforme preconizou Pacoaes, remove-se o último obstáculo que separava o salvador da salvação e cria-se-lhe o necessário enquadramento teórico-filosófico. Senta-se Pedro na pedra angular – a “soidade” – e inicia-se a edificação da igreja, quem sabe se catedral, onde os poetas lusitanos rezarão a “oração sebastiana” da existência transcendente no dia “que virá dissipar a noite escura”, como escreveu o autor de Verbo Escuro.
Será neste contexto que o neologismo genológico “postumografia” me parece carrear um outro valor simbólico. Creio poder ler aqui uma alusão à “prova póstuma da nacionalidade», a qual constitui a interpretação dada por Oliveira
Martins, na sua História de Portugal (1879) ao significado do sebastianismo como fenómeno histórico português moderno. Como é sabido, coube a António Sérgio o principal papel opositor àquele ponto de vista de Oliveira Martins deslocando o que este considera o “espírito rácico português” para um plano social e intelectual originário, ou pelo menos condicionado, pela “existência do cristão novo, comprimido e ansioso de redenção”.
O título do conto está longe de ser inocente e, pela via irónica que é sempre a melhor via de denúncia, postumiza o homem desejando postumizar o mito que este protagoniza. A este respeito cito um passo do início do conto onde aquele princípio irónico se insinua como presságio do que será o final. A citação diz respeito aos hábitos de vida e de leitura do predestinado salvador:
“Até esse infausto dia, [aquele em que o Governo fez pública a intenção de vender as florestas e o mar aos americanos] era parda, larvar e definitivamente outonal a sua existência – e nunca nenhum assomo de patriotismo lhe fizera sequer esquecer a gosma dos pulmões empedernidos pelo catarro. Mas, uma tarde, estando ele entregue ao deleite de ler a Bíblia, e discorrendo, assombrosamente, sobre as terríveis profecias do Apocalipse, sentiu renascer dentro de si uma espécie de coro de anjos, o qual veio devolver-lhe à memória a desgraça e o tumulto da miséria que começavam a alastrar pelo seu país”.
Observe-se um terceiro sentido irónico proveniente da justaposição de dois planos: de um lado uma existência parda, larvar; do outro uma sublimação fantasmagórica, apocalíptica. O futuro pseudo-salvador é desde logo apoucado aos olhos do leitor em função do desnível daqueles planos, projectando no nosso espírito a visão de uma pulga com catarro a imitar o poder do Cordeiro no famigerado Dia do Juízo tentando abrir, um por um, os sete selos terríficos. Aquele terceiro sentido sugerido vem revelar o ainda encoberto ao nível do texto: que, quando aquele homem tomar o poder para nos salvar, salve-se quem puder!
OS TRÊS PILARES DAS ESCRITURAS
As Sagradas Escrituras (dizem os seus hermeneutas) assentam em três pilares verbais: ler, ouvir e guardar. De idêntico modo se estrutura este conto já que o narrador leu o texto do biógrafo de Pedro, ouviu dos seus coetâneos o relato da sua trágica governação também por si experienciada e, por último, guardou-a como narrativa-memória para contar a má sina do país situado na Rota do Sol Apodrecido, espaço de marasmo onde reina a vontade desistente, país neutralizado pelo dormitúrico-do-não-há-nada-a-fazer-é-o-destino!
Num país narcotizado qualquer salvador é melhor que nenhum e qualquer agitação se confunde com acção. Não admira, pois, que o ilustre Pedro logo após a tomada de posse, ainda “com a alma ensopada pelo suor dos salões” seja finalmente recebido por um funcionário que se encontra acordado apenas por sofrer de insónia, revelando grande espanto e alguma inquietação por ter diante de si um ministro que não dorme à hora do almoço.
Pertence ao funcionário insone o seguinte aforismo:“Um ministro que não dorme, ou dá em doido ou é demitido de nascença”.
Não se tendo demitido restou-lhe dar em doido o que não foi de todo inconveniente para cumprir a vocação de salvador de um país de opereta, roído pela doença da preguiça, trabalhando por delegação funcionária e sub-empreitando legiões de anjos voadores para o desempenho das insípidas tarefas de arquivística burocrática. O final do conto, relatando as desgraças de há muito profetizadas sob o signo da ironia, funciona ainda como simbólica parusia e paralisia das mentes subjugadas pelo destino da demissão. É este um mundo de “cadáveres lunares” vivendo num limbo penoso e penumbroso que leva o narrador a vacilar na missão de contar a memória da sua gente, num quadro de vida enclausurada à míngua de luz, sob um sol apodrecido, reduzidas as estações a um Inverno perpétuo sem chuva, sem memória, sem amor, sem nada. Homens e mulheres igualizados pelo destino vivendo num tempo-marasmo, onde as crianças nascem e trazem consigo uma anormal velhice, sem unhas nem cabelos”.
SÓ UM MILAGRE!
Esta ideia do envelhecimento das crianças encontramo-la em relatos apocalípticos anónimos conhecidos pela designação de Oráculos Sibilinos os quais, segundo David Mourão-Ferreira, principiaram a circular no Egipto durante o Século II, anunciando o fim do mundo e o Juízo Final. Cito um trecho de um desses Oráculos apresentado em Imagens da Poesia Europeia :
“Assim que o signo aparecer por cima da Criação,/ as crianças hão-de nascer com cabelos brancos/ e os homens hão-de caminhar de rastos,/ Sob o peso da peste, da fome, da guerra,/ dos mudáveis destinos por onde correram as lágrimas.”
Não serão estas as lágrimas de gente feliz mas antes as do castigo, da abdicação e da renúncia. Qual João Evangelista, presumível autor do Apocalipse, desterrado na ilha de Patmos, o narrador da terra do Sol Apodrecido senta-se numa pedra da memória para dar testemunho do infortúnio colectivo:
“É preciso ir cada vez mais longe em busca da água que nos mantém vivos. A seguir à leva dos rios foi a venda das albufeiras e das nascentes, e não sei sequer se a sede é, para nós, uma espécie de saudade específica, um remorso vivo ou um pesadelo metafísico”.
De venda em venda, de desistência em desistência, avoluma-se o nevoeiro e a condição do homem é a de Tântalo que vê fugir a água salvífica cada vez para mais longe. Por esta forma, esperar por Dom Sebastião quer venha ou não, é transformar a esperança numa memória póstuma, é afinal de contas esperar o milagre:
“Desde essa altura, estamos para aqui. Jejuamos, esperamos o tão prometido milagre. Gememos baixo: – se ao menos Deus voltasse a ser tão poderoso, como nos bons tempos de outrora o fora …”
A voz do narrador destaca-se deste coro de proscritos e deixa ainda no ar uma breve nota de esperança que apontará talvez noutra direcção:“Mas eu, pessoalmente – e vocês sabem disso – já não acredito em milagres desses”.
Talvez que a capacidade de manter na catástrofe uma réstea de esperança seja por si só um milagre.
O MILAGRE SEGUNDO SALOMÉ
Neste contexto salvífico, não poderia, nem deveria esquecer O Milagre segundo Salomé, publicado por José Rodrigues Miguéis em 1975, o qual constitui uma das mais corajosas invectivas lançadas sobre o mito do Salvador da Pátria que, vindo de Braga, marchou sobre Lisboa e a envolveu em nevoeiro a 28 de Maio de 1926, o qual não se dissipou durante os longos anos de mau tempo que se lhe seguiram. Neste Milagre migueisiano, que o autor intitulava o livro “fantasma” devido ao quase silêncio crítico que o acolheu, o mito do salvador é protagonizado pelo ridículo General ABC – que Miguéis caracterizou ironicamente como «o Sagrado Factor Comum, o Lugar Geométrico duma nação esquiva às matemáticas.»
Embora o conto «Postumografia de Pedro-O-Homem» tenha sido publicado doze anos depois d’ O Milagre segundo Salomé, João de Melo só viria a ler este romance em 1995 (conforme informação que obtive do próprio) facto que torna ainda mais original a confluência e o aproveitamento deste tema por parte do autor d’O Meu Mundo Não É Deste Reino, ele mesmo um leitor entusiasta da Obra de José Rodrigues Miguéis.
Sendo «Pedro-O-Homem» uma das narrativas menos conhecidas de João de Melo, nem por isso ela se me afigura menos importante, pois que, a seu modo, e dentro do cânone do género que a configura, constitui uma peça imprescindível para o estudo das representações literárias do mito do salvador da Pátria, que Miguéis tratara já anteriormente também no romance Nikalai! Nikalai! (1971) c
entralizado em torno da desesperada esperança de reconduzir ao trono da Santa Madre Rússia um simulacro do Czar Nicolau II.
A Literatura, como apontou Genette em Palimpsestes, vive em transfusão perpétua, por via transtextual, escrevendo a várias mãos em várias épocas um vasto Livro, um só Livro Infinito. É realmente interessante esta metáfora da transfusão, porque ela aponta para o sangue que alimenta, que salva, que vivifica. Na circulação do mito do salvador através dos tempos e das obras literárias, lemos ainda a crença arquetípica no homem que conduzirá os outros homens para a mítica Idade de Ouro em que Saturno, o deus Tempo, governava a Terra. Um bonito sonho para amanhã.
TARDE É JÁ VIVER NO DIA DE HOJE
Todavia, viver por conta de amanhã, não deverá impedir-nos de fruir o dia de hoje, como nos aconselhou um poeta nascido na Península Ibérica há mil e novecentos anos – Marcus Valerius Martialis – no epigrama que transcrevo de Imagens da Poesia Europeia, numa adaptação de David Mourão-Ferreira:
«Amanhã», dizes tu. «Viverei amanhã».
Quando virá, porém, esse tal amanhã?
Ah! Que sabemos nós do dia de amanhã?
Em que reino se esconde o dia de amanhã?
Que idade tem ao certo o vulto de amanhã?
É coisa que se venda? É coisa que se compre?
Que certeza tens tu de estar vivo amanhã?
Tarde já é viver no próprio dia de hoje.
Mais sábio é começar a viver desde ontem».
Reduzindo os avatares salvíficos à sua condição de figuras de papel, viver é ainda partilhar com os leitores a alegria de ler, como os pássaros quando voam baixinho, debicando um grão de sentido aqui, outro ali, saltitando de palavra em palavra, poisando de texto em texto, porque, como lemos n’O Meu Mundo Não É Deste Reino, “os pássaros poisam facilmente na alegria”.
Teresa Martins Marques,ensaísta,crítica literária e investigadora integrada no Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa da Universidade de Lisboa.
Competente,dirigiu a organização do acervo literário de David Mourão- Ferreira, na Fundação Calouste Gulbenkian, entre 1997 e 2004. Autor tema da sua tese de doutoramento na Universidade de Lisboa. Integra a Diretoria da Associação Portuguesa de Escritores.
A expressiva obra e a trajetória acadêmica construída com talento, sensibilidade,profissionalismo e grande rigor científico revelam a força criadora da escritora Teresa Martins Marques.
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