Narrativa em falsos dilemas
Jovens selecionados pela Granta seguem opções estéticas diversas
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João Cezar de Castro Rocha
Em 1908, Joaquim Nabuco, primeiro intelectual brasileiro globalizado avant la lettre, realizou uma série de palestras em universidades norte-americanas. Machado de Assis, em carta enviada em 1° de agosto do mesmo ano, após parabenizar o amigo, lamentou a difusão restrita da língua portuguesa: “Obrigado por todos e particularmente pelo que trata do lugar de Camões na literatura. É bom, é indispensável reclamar para a nossa língua o lugar que lhe cabe, e para isso os serviços políticos internacionais que prestarem não serão menos importantes que os puramente literários. Realmente é triste, ver-nos considerados, como V. nota, em posição subalterna em relação à língua espanhola.”
O número especial de Granta dialoga com essa preocupação, pois pretende tornar a ficção brasileira um novo ator no mercado literário internacional. Nesse contexto, vale mencionar o recente Programa de Apoio à Tradução e Publicação de Autores Brasileiros no Exterior, criado pela Fundação Biblioteca Nacional. As duas iniciativas possuem potencial para fortalecer a presença internacional da literatura brasileira.
Em uma entrevista no site da revista (www.granta.com), o editor Marcelo Ferroni menciona outros autores ainda jovens, mas que haviam ultrapassado o limite estabelecido para a antologia. Como se esclarece na introdução, dois são os critérios: “Autores com menos de 40 anos e com pelo menos um conto publicado.” Das 247 inscrições aceitas, 20 nomes foram selecionados, compondo um panorama inédito da ficção brasileira, que certamente estimulará estudos cuidadosos.
No espaço de uma resenha, porém, não posso fazer justiça aos excelentes 20 textos escolhidos. Por isso, limito-me a destacar três ou quatro aspectos que esclarecem a vitalidade da literatura brasileira contemporânea.
Em primeiro lugar, a diversidade das opções estéticas. Num ambiente que muitas vezes se viu contaminado por pensamentos teóricos binários e opções artísticas dicotômicas, a diversidade é um valor em si mesmo.
Em segundo lugar, a pluralidade dos núcleos temáticos, pois, embora a cidade domine a paisagem, as formas de abordar a vivência urbana são diversas e irredutíveis a uma tendência hegemônica. Aliás, em vários casos, os textos nem mesmo se referem ao núcleo urbano. Os dois fatores se relacionam.
É como se nosso jovem autor exercitasse com desembaraço o “certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”. Essa foi a célebre definição proposta por Machado de Assis em 1873; aliás, num ensaio escrito originalmente para um público de língua inglesa. Em alguns textos da antologia, não se encontra nenhuma “marca” propriamente nacional; assim sua leitura se mostra imune às tentativas da criação de nichos de mercado. Pelo contrário, os jovens autores afirmam com todas as letras: literatura brasileira é, acima de tudo, literatura.
Em terceiro lugar, o compromisso com a inovação linguística e o apuro com a estruturação rigorosa do texto supõem um instante muito promissor. O experimentalismo deixou de ser opção excludente, em tese oposta à vocação narrativa, tornando-se antes conquista assimilada à fatura literária. E isso tanto num texto com dicção de crônica quanto num conto formalmente ousado. Não importa: em ambos os casos, o leitor pode encontrar a experimentação com pontos de vista e o desenvolvimento de jogos de linguagem, entre outros recursos.
Para os jovens autores, experimentalismo dispensa holofotes, convertendo-se em incontornável respiração artificial – andaime que se incorpora à arquitetura. O escritor e ensaísta Flávio Carneiro propôs a noção de “transgressão silenciosa” como procedimento característico da literatura brasileira contemporânea. Os textos coligidos em Granta confirmam sua intuição.
Compreenda-se bem: não se diz que os jovens autores tenham abdicado da experimentação em prol de possível inserção num hipotético mercado internacional. Esse seria um equívoco sério de interpretação.
No fundo, os autores mais jovens superaram o falso dilema entre experimentalismo e narrativa, que por muito tempo cavou trincheiras na criação e na crítica. Por isso, em seus projetos literários, não há incompatibilidade entre arte de contar histórias e gesto de experimentar com formas alternativas de imaginar a “mesma” trama. Talvez essa seja uma das principais contribuições desse número especial. Os textos reunidos em Granta, portanto, ajudam a pensar de forma nova a literatura brasileira contemporânea. Salvo engano, não se pode exigir mais de uma antologia
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Nota: O Autor, JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA,é Professor deLiteratura Comparada sa Universidade do Estado do Rio de Janeiro.UERJ.
Sendo o artigo publicado no Estado de São Paulo em 15 de Julho de 2012
Ensaísta. Autor de Exercícios críticos – Leituras do contemporâneo (Argos, 2008); Crítica literária – Em busca do tempo perdido? (Argos, 2008); O exílio do homem cordial. Ensaios e revisões (Editora do Museu da República, 2004); Literatura e cordialidade. O público e o privado na cultura brasileira (EdUERJ, 1998), “Prêmio Mário de Andrade” (Biblioteca Nacional). Co-autor de Evolution and Conversion (Continuum, 2008), com René Girard e Pierpaolo Antonello (edições em português, italiano, espanhol, polonês e francês – Prix Aujourd’hui 2004). Editor de mais de 20 livros. Recebeu o Humboldt-Forschungsstipendium (Alexander von Humboldt-Stiftung/ Freie Universität Berlin 2005-2006); e foi “Ministry of Culture Visiting Fellow” (University of Oxford, Centre for Brazilian Studies – 2004); “Tinker Visiting Professor” (University of Wisconsin, Madison – 2003); “Overseas Visiting Scholar”, (Cambridge University, St John’s College – 2002); “John D. and Rose H. Jackson Fellow”, (Yale University, Beinecke Library – 2001).