Antonio Olinto em poucas palavras.
Por Gabriel Labanca
Quando encontrei Antonio Olinto pela primeira vez ele tinha 89 anos e nenhuma intenção de morrer. Quem muito planeja a vida, tem pouco tempo para pensar na própria morte e projetos não faltavam para o escritor. Um dos muitos que me confessou era o de republicar uma enquete feita para a sua coluna n´O Globo, ainda na década de 50. Por três anos, Olinto coletou relatos de 180 escritores renomados sobre as dez palavras mais bonitas da língua portuguesa. Sem relutar, Jorge Amado elegeu sua preferida: safada. Mas diante do constrangimento do colunista, o autor baiano trocou sua palavra para “saudade”, a campeã entre os escritores. Já Guimarães Rosa colocou em primeiro lugar de sua lista “Murucututu”, uma coruja pequenina que as pessoas do Amazonas costumavam ter em casa como um enfeite. Mas não era o seu significado que agradava o autor de Grande Sertão e sim sua sonoridade: “Veja, Olinto: Mu-ru-cu-tu-tu. Não é uma beleza uma palavra com cinco Us?”. Para Olinto, no entanto, era a “alegria” seguida de “aurora” que desbancavam todas as outras palavras do dicionário.
A palavra, inclusive, não foi apenas instrumento de trabalho do escritor e crítico literário mineiro. Foi uma bandeira levantada e carregada por Olinto durante toda a sua vida. O amor e o domínio sobre a palavra, a língua, o estilo eram para ele o símbolo da civilização, aquilo que nos diferencia dos animais. “Da palavra surgiu a civilização”, gostava de lembrar, sem ela “você não ama, não odeia… sem a palavra, como é que eu iria te contar tudo isso?” Já por volta dos 15 anos, o futuro crítico literário pôde demonstrar sua vocação no seminário onde estudava para tornar-se padre. Após ler alguns poemas que Olinto andava escrevendo, um Bispo que lhe era mais próximo o aconselhou: “Bom padre não pode ser poeta, bom poeta não pode ser padre”. Só aos 18 anos, no entanto, quando foi cursar Teologia em São Paulo, finalmente resolveu apenas a palavra de Deus não lhe bastava. Assim, rumou para o Rio de Janeiro para ser escritor. Com a reforma Capanema, o latim deveria fazer parte dos quatro anos ginasiais das escolas brasileiras. Porém, a falta de professores do idioma não havia sido levado em conta. Como o estudo do latim fazia parte da formação dos padres, Antonio Olinto, junto com seu colega Roberto Campos, se beneficiou disso dando, às vezes, dez aulas por dia.
No tempo que lhe sobrava, escrevia poemas e críticas que continuavam indo direto para as gavetas de sua escrivaninha. Em 1945, resolveu agir: fundou, com Antônio Fraga, o grupo Malraux de poesia e publicou seu primeiro artigo na imprensa, um texto sobre literatura e cinema no jornal Diretriz. Depois disso, Olinto assumiu de vez a identidade de colunista literário, atividade desempenhada até o dia de sua morte.
Mesmo sendo um homem cultivado em uma cultura dita “erudita”, o respeito à palavra o impedia que desprezasse qualquer tipo de manifestação através dela. “Amanhã você vai ler a coluna que fiz sobre o último livro de Paulo Coelho” disse ele. Intrigado, perguntei se ele tinha achado bom. “É o melhor dele”, explicou como se não fizesse distinção dos textos pelo nome de seus autores. “O Paulo Coelho começou a escrever com uma linguagem primitiva e os primitivos podem ser bons”. Sem recriminá-lo, Olinto entendia bem o apelo mercadológico do autor que o levou ao sucesso. “Há uma necessidade de misticismo e ninguém está fazendo isso hoje”. Enquanto grande parte dos intelectuais torcia o nariz para esse tipo de literatura, Paulo Coelho atendia aos leitores sedentos pelo esotérico. Tanto que, quando quis lançar seu livro na Academia Brasileira de Letras pouco depois de ser empossado, Olinto precisou interceder a seu favor junto aos demais acadêmicos: “Ele é o escritor que mais vende no país, vamos fazer o lançamento!”. O evento foi marcado e colocaram então uma mesa para o escritor no quarto andar do Petit Trianon, sede da Academia. Muito antes do escritor chegar, os fãs foram formando uma fila que em pouco tempo ocupou todos os andares do prédio e ainda saía pela calçada afora. Assim que chegou, ao invés de subir e dar início à sessão de autógrafos, Paulo Coelho foi para o final da fila e agradeceu, um por um, a cada um dos presentes. Desconfiados, os demais imortais se preocupavam com o atraso da cerimônia enquanto Olinto os acalmava: “Ele sabe o que está fazendo. É por isso que ele vende”.
Talvez tenha sido a vivência de uma redação de jornal que não o deixou se distanciar do mundo real, mesmo depois de se tornar um imortal da Academia Brasileira de Letras. Olinto compreendia o valor das palavras, tanto esteticamente quanto economicamente, ainda mais tendo convivido por anos com figuras como Roberto Marinho e Nelson Rodrigues. Grandes amigos e colegas de redação, Olinto e Rodrigues estavam sempre dispostos a trazer algo novo para o mundo da imprensa, ao passo que Marinho adequava as idéias da dupla às necessidades de lucro da empresa. Certo dia, no começo da década de 50, Rodrigues confessou ao amigo o desejo de fazer uma coisa diferente, escrever histórias de amor, suicídio e outros dramas da vida cotidiana, mas no jornal. Ao ouvir aquilo, Roberto Marinho incumbiu os dois de escrever diariamente um consultório sentimental. “Escolham um pseudônimo de mulher. Num dia escreve um e no outro o outro, e as mulheres mandarão cartas com seus problemas”. Escolheram então o nome Malu e a coluna foi um sucesso entre as leitoras, público cobiçado naqueles dias. Difícil mesmo foi convencer a filha do embaixador Ouro Preto, que foi até à redação reclamar, de que o nome usado na coluna não fazia qualquer referência ao seu próprio nome.
Outro episódio da dupla mostra como muitas vezes grandes criações só podem florescer num terreno fértil. Na redação do Última Hora, Nelson Rodrigues finalizava sua coluna “A vida como ela é” quando o chamaram para atender um telefonema. Olinto espiou o texto inacabado do colega: “Ele chegou e se olhou no espelho…”. Sem que Nelson percebesse, deu continuidade “…Abriu a gaveta, pegou um revólver e não chegou nem a pensar. Colocou a arma na testa, deu um tiro e caiu”. Voltando à mesa, Nelson perguntou se alguém tinha mexido em sua máquina. Com a negativa geral, continuou batendo: “O corpo caiu e quando Maria entrou e viu o morto deu um grito”, aceitando assim a morte inexplicável de sua personagem sem saber da participação de Olinto na tragédia.
Coerente com sua trajetória, Antonio Olinto não acreditava no crítico literário que se colocava acima dos leitores, sentindo-se com poderes mágicos para decidir o que é bom ou ruim. “Se ele não manter a humildade de um servidor das letras ele está perdido”. Embora sempre sereno em sua fala e expressão facial escondida atrás de enormes óculos de grau, o escritor parecia ter horror dos críticos que acreditam ter a autoridade de distribuir a importância dos textos. Para ele, o escritor não poderia se sentir importante em relação a coisa alguma, pois tudo que é escrito com uma finalidade é importante. Como adido cultural na África e na Inglaterra no início dos anos 60, Olinto foi realmente um servidor das letras, tendo feito inúmeras conferências sobre as letras brasileiras no exterior. Certo dia, quando faria uma palestra sobre a obra de Jorge Amado em uma universidade no norte da Inglaterra, o próprio autor tema do evento o visitava em sua casa. O escritor baiano não se conteve e quis assistir a reação da platéia. Ao final da comunicação, uma estudante teve a curiosidade de saber como era aquele autor fisicamente e Olinto, olhando para Jorge Amado sentado na primeira fileira, o descreveu para o público. Quando saíram, Amado mostrou
-se satisfeito, com apenas um porém: “Você acha mesmo que estou gordo, Olinto?”.
De volta a 2008 em seu apartamento em Copacabana, Olinto me mostrava um livro de José Luis Lira que iria ser lançado sobre a sua vida: Brasileiro com alma africana. Já um pouco fraco para se abaixar, pediu que eu alcançasse um volume dentro de uma caixa no canto de seu escritório. “A cabeça está boa, mas as perninhas são fracas”, falou rindo. Pediu-me que abrir o livro em uma das páginas finais e ler o trecho de um poema de Maiakóvisk ali impresso: “Dizem/ que em alguma parte/ parece que no Brasil/ existe/ um homem feliz”, ao que ele mesmo completou embaixo dos versos: “E eu vos digo/ que é verdade:/ eu sou esse homem/ com meus/ oitenta e oito anos/ de plena felicidade”. Olinto parecia mesmo uma fonte inesgotável de entusiasmo, o que levou Paulo Coelho, no prefácio que fez neste mesmo livro, a chamá-lo de “incansável”. Outros autores usaram expressões parecidas sempre que precisaram definir o autor. Incansável ou imortal, infelizmente os adjetivos que criamos para nos distanciarmos da morte não nos fazem imunes ao tempo e, em setembro de 2009, Antonio Olinto finalmente descansou. Foi embora cheio de alegria antes mesmo de chegar a aurora. Deixou saudades.
Nota:O Autor Gabriel Labanca é Publicitário, Mestre em História e Professor da Universidade Estácio de Sá.