Nos hospitais há sempre uma ilha de histórias tristes
Eduardo Bettencourt Pinto
As folhas das árvores, caídas, sugerem partículas de sonhos desfeitos. São vermelhas, amarelas, laranja. Estão húmidas da chuva. A sua beleza é irradiante e melancólica. Observo-as enquanto vou caminhando lentamente a caminho do hospital.
Entrego o papel do meu médico à rececionista dos serviços de urgência. Momentos depois sigo Maria, a enfermeira, como um cordeiro obediente. É baixinha, veloz, cabelo curto, negro e luzidio.
Após um breve trajeto, indica-me uma cadeira ao fim do corredor.
– Daqui a pouco o médico vem vê-lo – diz, voltando costas.
Sento-me. Do outro lado, mesmo em frente, está uma jovem muito, muito gorda de t-shirt branca e calções. Ostenta, no braço esquerdo, uma tatuagem grosseira. Tem todo aquele ar de quem diz, tem cuidado comigo. Ao lado, com ar de enfado, uma agente policial. Momentos depois, porém, levantam-se e seguem uma enfermeira.
Trago comigo Left Negleted de Lisa Genova. Ponho-me a ler.
As cadeiras mantêm-se vazias por algum tempo. Depois Maria, a enfermeira, volta a aparecer. Segue-a um sujeito alto, magro, desengonçado e de meia-idade. Exibe um bigode grisalho em U ao contrário. Traz um boné vermelho de beisebol muito enterrado na cabeça, um casaco grosso. No ombro direito, pendurada, uma enorme mochila.
Despe o casaco, atira-o para a cadeira e repousa a mochila no seu lado esquerdo. Sentado, descalça-se lentamente.
Mexe os dedos dos pés dentro das peúgas pretas. A face contrai-se e massaja-os. Depois recosta-se na cadeira e faz pressão com os braços até acionar o apoio dos pés. Estica-se, por fim, confortável.
Estou aqui há mais de uma hora e ainda não vi o médico. Por fim oiço-o através da cortina do meu lado direito. Observa um miúdo. «Isto está mal, amigo. Desculpa mas a infeção tem de ser lancetada. Não há outra maneira», diz. Quando a mãe explica ao filho o que o médico acabou de dizer, este solta um berro de hiena. Entra numa histeria de palco. A mãe não consegue acalmá-lo e aquilo transforma-se num verdadeiro temporal. Ao cabo do minuto mais longo da minha vida, cala-se. Começo a respirar normalmente.
Silêncio. Volto a ler mas sinto os olhos pesados. Aborrece-me estar aqui. Gosto de movimento e esta infeção no pé, estranha e agressiva, força-me à imobilização.
Oiço um ruído e reparo no homem em frente. Tira um pacote da mochila, abre-o, e põe-se a comer. Mal o acaba, atira-o para o lixo e abre outro.
– Você traz nesse saco uma mercearia, hein?
Olha-me confuso.
– O quê?
Repito. Oferece-me um sorriso frio. Uma conversa, por muito banal, sempre ajuda a preencher vazios.
Continuo a ler. De repente a voz dele, amigável:
– Já tive casa há uns anos atrás. Agora não faz sentido ter mais do que isto – confessa, apontando a mochila.
Vive na rua há quatro anos, desde que a mulher morreu de cancro. Enlouqueceu com a sua perda: abandonou o emprego, a casa, as memórias mais íntimas de uma vida. Fugiu de si próprio.
– Ninguém merece um sofrimento daqueles. Ninguém.
Abano a cabeça, anuindo. É então que o médico, sorridente, aparece. Põe-se diante de mim com a minha ficha na mão, e pergunta:
– Que se passa consigo?
O sujeito com quem eu falava tosse, é um ruído por trás do médico e que se apaga por momentos da minha mente. Volta a aparecer mal o médico se afasta. Tem os olhos fechados, mas não dorme. Vigia o silêncio que arde dentro de si como uma lâmpada fundida.
Assim é por vezes o destino de um homem.
Eduardo Bettencourt. Ficcionista e poeta. Natural de Angola, com passagem afetuosa no Açores onde tem familiares e amigos. Vive em Vancouver e é de lá que se faz ouvir lindamente em textos poéticos: prosa e poemas. Brinca com as palavras, carrega-as de um lado com outro. Domina-as em seus multíplos significados que falam à alma. Abraça cada uma no seu jeito ímpar de ver a vida passar, de sentir o mundo. Gosto muito de sua escrita que me chega em todas as estações e sempre cheia de Sol. Escrita belíssima,cheia de cromacia, movimento…
Uma produção literária vigorosa representada por inúmeros livros,presença em antologias, revistas digitais (como a Seixo Review que criou,dirigiu por um longo tempo) e inúmeros colóquios e congressos literários.