CONVERSAS DISPERSAS
João-Luís de Medeiros
Parágrafo preambular:
… /… era uma vez um perguntador-misterioso chamado JLM (João-Luís de Medeiros) que, numa manhã primaveril do ano 2004, resolveu entrevistar o micaelense ‘João Taveirós’, seu antigo e leal pseudónimo poético. Como já não se viam desde Outubro de 1980(*), o diálogo entre ambos depressa principiou a rolar na antiga ladinice militante nas fileiras democráticas do socialismo nascente na região açoriana.
(Aqui vai uma palavra de antecipado apreço pela cortesia prestada pelo eventual leitor).
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JLM – … como tens passado, caro camarada? Dize-me há quanto tempo não confessas os teus pecados (perdão) os teus precalços políticos… Ano Novo, contas em dia! Sabemos que o “25 de Abril” aconteceu há décadas… mas não esqueças o velho ditado: – ‘quem diz a verdade não janta cá hoje’.
João Taveirós … andas há anos a desafiar-me, sempre a insistir, a insistir… e eis que me apanhas hoje com excesso de graxa nas dobradiças da palavra. Sabes que não costumo cerzir comentários à (minha) militância política antes ou depois do “25 d’Abril”. De resto, é cada vez mais reduzido o número de camaradas socialistas que reconhece o trabalho militante desenvolvido pela equipa pioneira que ajudou a fundar o PS/A. As gerações mais recentes tendem a esquecer que o antigo nem sempre envelhece. Ademais, se fosse necessário dissecar o fenómeno, iríamos pedir emprestado à Psicologia a teoria científica para explicar este tipo de insegurança generacional…
JLM – Caramba! Explica-te melhor…
J. Taveirós … desde meados da década de 80, muitos açoreanos entraram numa fase refrescada de narcisismo autonómico: na primeira fase, eram hostis à presença dos “continentais”; depois, escarneciam com arrogância rústica a presença das ‘moscas-de-verão…até que veio o dia em que foram repentinamente visitados (invadidos!) pelos chamados indesejáveis gafanhotos da deportação norte-americana…
JLM – Estava há pouco com a intenção de perguntar se estás ou não ao corrente do que terá acontecido ao património memorial do PS/A, mormente aquele que foi acumulado na primeira década revolucionária (1974-84 )…
J. Taveirós – Não faço a mínima ideia. Apenas recordo que cheguei a estar registado com o número onze, na lista original dos co-fundadores do PS/Açores . Os primeiros ‘dezoito lusaçores socialistas’ foram registados por ordem alfabética – lembras-te? – para não melindrar susceptibilidades narcísicas alusivas à veterania dita anti-fascista…
Imagino que ainda te lembras quando tive de interromper a militância partidária, para ir ‘servir o capitalismo norte-americano’ (conforme rosnaram algumas das más-línguas da época). Naquela época ainda tentei manter viva a faísca e o pavio do meu itinerário, facultando inclusivé o endereço postal da empresa onde assentara praça como operário fabril. Salvo meia dúzia de excepções, fiquei com a impressão de que o resto da malta preferia conversar com a cuspideira da indiferença… De resto, alguns dos apóstolos da pseudo-virilidade ideológica da época limitavam-se a tossir asneiras: ‘ – eh pá, um gajo d’Esquerda não emigra…’.
JLM – Parece que te compreendo: estou bem recordado de que, durante meia dúzia de anos, procurei gerir com alguma prudência cívico-psicológica os esbirros da boçalidade psico-política da nossa boa-malta, mas…
J. Taveirós – … desculpa a interrupção: tive e tenho, como bem sabes, a subida honra de ter adversários políticos (pessoais e institucionais) nas fileiras do conservadorismo micaelense. Porém, não foi fácil reconhecer que havia alguns‘camaradas’ a latejar ciumeiras dentro das próprias ameias do PS micaelense – indivíduos apreciadores das nossas próprias debilidades, mas altamente motivados para denegrir o par de qualidades políticas que, a certa altura do percurso revolucionário, cheguei a ter a pretensão (a ilusão?) de possuir…
JLM – Agora, observando à distância do tempo, fica-se com a impressão de que muitos representantes das novas classes dirigentes PS/Açores preferem empalidecer a memória natalícia do seu próprio partido. Aparentemente, têm pejo de se identificar, ideologicamente, com o passado do PS/A – como sabemos, um Partido musculoso em ideais, todavia débil no ritualismo pequeno-burguês da sua teatralidade parlamentar. Enfim… um Partido cujos dirigentes foram um dia surpreendidos pela iminência da responsabilidade governativa regional; aliás, eram merecedores duma tão exigente responsabilidade…
J. Taveirós – … sem dúvida, mas ainda não se sentem seguros para apostar na coexistência generacional… E é curioso notar o seguinte: o chamado ‘simpatizante-PS’ que consiga colar-se ao vagão do governamentalismo actual, goza dum mais alargado pálio de solidariedade institucional do que os antigos camaradas que tropeçaram nos destroços das bombas, que perderam o emprego, que foram vigiados – tudo porque na época tiveram a ousadia (ou a ingenuidade) de proteger a virgem Autonomia açoriana do ‘rapto’ dos recém-convertidos ao paganismo partidário.
JLM – Pois é. Ultimamente, fala-se do princípio de que todos os açorianos residentes estão à mesma distância institucional da presidência do Executivo regional. Talvez seja um bom sinal… Historicamente, só a presidência da Assembleia Legislativa Regional estava, teoricamente, ao alcance dessa equidistância. Muitos fingem ignorar que o sistema da autonomia política açoriana é inspirada no parlamentarismo, e não na pomposidade presidencialista…
J. Taveirós – Ora como sabes, tive apenas a honra de integrar o grupo socialista que, em 1975, defendeu o princípio de que a equipa inicial da Junta Regional fosse integrada por ilhéus idóneos oriundos doutras ilhas que não apenas S.Miguel (Martins Goulart e LeonildoVargas são dois testemunhos felizmente ainda vivos dessa táctica…).
Mais tarde, como dirigente regional e nacional do 1974-1980, tive ainda a honrosa oportunidade de cooperar na realização do Primeiro Congresso Regional do PS, que na altura teve participação regional, nacional e até internacional (esteve presente uma representação da social-democracia sueca). Recordo que nesse Congresso, realizado em Ponta Delgada, a então recente bandeira da Autonomia foi, pela primeira vez, colocada no pavilhão de honra que ladeava a mesa do Congresso …
JLM – Sim, tenho uma ideia viva desses factos… Mas haverá alguma foto desses eventos? A propósito, será que existem fotos da bancada socialista, na primeira legislatura da ALRA? Na época, havia o boato de que, até 1980, os fotógrafos sentiam-se intimidados para apresentar imagens da presença socialista no quotidiano açoriano. Mesmo assim, estou confiante em que o arquivo televiso referente às primeiras conferências de imprensa (1975-1979) esteja ainda disponível aos estudiosos devidamente credenciados. Refiro-me ao tempo das reportagens televisivas acarinhadas pelo jornalista Varela Soares, na altura um dos pioneiros da delegação da RTP/A…
J. Taveirós – Dizem que o tempo não envelhece. Por enquanto, pouco se conhece dos testemunhos audio-visuais das manifestações, comícios, entrevistas, jornadas parlamentares das oposições (1976-1980). Escusado lembrar que os responsáveis pelo aparelho partidário PS/A têm à sua guarda uma missão pedagógica inalienável . Claro que não advogamos a glorificação de protagonismos de mera circunstância vedetista. Nada disso.Trata-se de localizar, preservar e divu
lgar os meios para garantir a veracidade histórica: os eventos políticos dos últimos 30 anos não são pertença privada de nenhuma dinastia partidária…
JLM – A propósito, não achas que muitos responsáveis detestam cultivar a seara da memória partidária, devido ao receio de serem considerados ‘enfermos do saudosismo reaccionário’…?
J.Taveirós – … creio que não ser civicamente elegante olvidar os vivos e os mortos que, em Maio de 1976, integraram o nosso primeiro grupo parlamentar: Angelino Páscoa, Silvano Neves Pereira, Roberto Amaral, Martins Goulart, Conceição Bettencourt, Mercês Coelho, Francisco Macedo, Daniel de Sá, Félix Martins… (a propósito, não quero esquecer a tua presença no elenco multipartidário da I Comissão parlamentar que redigiu o estatuto do deputado regional – comissão presidida por Álvaro Monjardino, acompanhado por Melo Alves, Rogério Contente, Carlos Bettencourt ).
JLM – Eh pá, quem fala assim, não é gago! Lá estás outra vez na busca das pautas musicais da sinfonia interrompida da solidariedade socialista…
J. Taveirós – … desculpa a interrupção: não vamos revisitar eventos de triste memória (1975/76) como, por exemplo, bombas a explodir na sede do PS/A, o incêndio na residência da família Gama, os automóveis danificados, ameaças telefónicas diárias, a honra dos nossos nomes vilipendiada nas pinturas murais, as carreiras profissionais desmanteladas, alguns casamentos esmagados pela aleivosia da época … Não vamos hoje falar disso. Mas penso que não seria saudosismo doentio mencionar os concorridos concursos de empresas privadas para admissão de pessoal… Sim, já me lembro: quando o concorrente vencedor era (ideologicamente) considerado ‘persona non grata’, a respectiva admissão ficava adiada sine die, como aliás aconteceu contigo, em Janeiro de 1978…
JLM – … estou a escutar-te, com viva emoção, meu caro João Taveirós. Ambos aprendemos que não há revoluções legais… Mas é bom não esquecer que os socialistas açorianos do último quartel do século XX, não foram ‘pagantes’ exclusivos do preço psicológico que uma revolução exige aos seus leais servidores. Alguém já disse que ‘a vida é uma guerrilha inventada pela genética e praticada pela biologia’. Entretanto, para alguns dos nossos camaradas, a morte vai cumprindo o seu dever! Se calhar, morrer é emigrar um pouco…
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(*) em Outubro de 1980, o então deputado JLM emigrou com a respectiva familia para os E.U.A.,
logo após o honrado termo do seu mandato à I Legislatura da ALRA (1976-1980).
(o autor escreve à revelia do recente acordo ortográfico)
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Do Autor João-Luís de Medeiros
Natural da freguesia micaelense de São Roque, Açores (Dezembro, 1941).
Concluíu a sua preparação secundária no Ensino Técnico Profissional. Mais tarde, fez parte da chamada geração do “sorriso triste”, que foi forçada a enfrentar o conflito colonial (Moçambique – 1963/66).
Regressado a São Miguel, trabalhou 10 anos no sector privado empresarial. A partir de 1976, serviu a jovem democracia portuguesa não só como vereador municipal (Ponta Delgada) como ainda parlamentar eleito à I Legislatura da A.L.R.A. (Horta, Faial); mais tarde, integrou o grupo parlamentar do P.S., na Assembleia da República (San Bento – Lisboa).
Uma vez concluídos os seus mandatos, em finais de 1980, emigrou com a família para os Estados Unidos da América (costa leste); mais tarde (1999) voltou a “emigrar”, mas desta feita para o sudoeste da California.
Durante a sua longa experiência como imigrante, tem mantido presença assídua na comunicação social, designadamente, na imprensa e rádio da diáspora lusófona, subscrevendo, desde 1976, a coluna “memorandum” e o programa “ideias ao desafio”.
• Bachelor of Arts ‘cum laude’ Humanities & Social Sciences (University of Massachusetts/Dartmouth);
• Master of Sciences “Human Resources Management”
Chapman University – Orange, California.
Bibliografia:
– co-autor “Em Louvor do Divino” – 1993
– autor “(Re)verso da Palavra” – 2007
– autor “Canteiro da Memória” – 2010