O novo duplodizer
No mundo de “1984”, de George Orwell, o Estado cria uma linguagem dúbia e postiça, capaz de se adaptar a qualquer nova realidade. É o “doublethink”. No Brasil de hoje, o “duplodizer” aparece em todas as esquinas, em todos os plenários – seja no ambiente onde se administra a Justiça ou na desorganizada democracia dos estádios de futebol.
Vejamos algumas variações do “duplidizer” aplicado ao cotidiano, a começar pela ilusória inflexão do verbo “valer”. O “Valeu” pode ser uma interjeição de regozijo, de celebração, mas, no fundo, quer apenas encobrir um fracasso.
Valeu: Na verdade, não valeu coisa nenhuma. Um fracasso só se justifica para prevenir outro. Ou para evitar a punição decorrente do primeiro fiasco. Quando se diz (no futebol) que um resultado foi aceitável – e que “valeu”! – o que se quer encobrir é que foi uma derrota humilhante.
Ajuste: Sempre que se lê ou ouve a palavra “ajuste”, cuidado! “Ajuste” não tem nada a ver com justiça. Na verdade, é a sua antítese. “Ajuste” geralmente é aumento de preço ou diminuição de salário.
Superávit primário: É a quantia que o governo separa para pagar os juros da dívida pública, interna ou externa. Na prática, significa arrocho salarial e aumento de impostos. Superávit pra quem, cara pálida? Pro contribuinte é que não é.
Transparente : Na vida pública brasileira, nada é transparente, tudo é opaco. De transparente, mesmo, só os parentes. Os “sobrinhos” que os políticos empregam, praticando o nepotismo explícito ou cruzado.
Esforço concentrado: Sinônimo de ócio parlamentar, em decorrência do qual se faz necessário o tal esforço, sempre muito bem remunerado. É como diz o jornalista Jânio de Freitas: “[É uma concentração de deputados que detesta o esforço de aparecer no trabalho”.
É Legal: “Pode não ser moral, mas é legal”… Ou seja: trata-se, apenas, de uma maneira “soft” de admitir que alguém “botou a mão no baleiro” com a maior cara de pau.
E, para dar os trâmites por findos, registremos o duplo sentido de “Pacto Social”. Ótimo para a turma que reivindica e é atendida, corporativamente. Se a viúva estiver pagando, melhor ainda. “Eles” fazem o “alcance”, reajustam o próprio salário – e o Pato é você, que paga a conta…
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Taxa de felicidade
Se existisse um termômetro capaz de medir a felicidade dos países, a quantos graus andaria a felicidade do Brasil?
Infelizmente a felicidade brasileira tende a se alinhar na segunda página dos cem países mais estáveis e civilizados do Mundo. Um certo Instituto chamado [“Population Crises International”] – que inaugurou um “medidor de felicidade” – situa o Brasil no nível 50 entre cem países, lançando um olhar sobre os vários indicadores de “IDH”. Ou Índice de Desenvolvimento Humano”, tendo por parâmetro um verdadeiro [coquetel]: analfabetismo, escolaridade, qualidade de ensino, saúde, nível de emprego, crescimento demográfico e – o nosso “calcanhar de Aquiles”: índice de homicídios por grupo de cem mil habitantes. Aqui, naufragamos…
Devemos ao heróico povo brasileiro a circunstância de sermos, segundo os parâmetros estudados, o “mais feliz entre os infelizes”. Não é à toa que saxões e europeus em geral se deslumbram com a [“joie de vivre”] ainda existente sobre todas as mazelas que nos afligem aqui abaixo do equador.
Que outro país sobreviveria a uma classe política tão alienada e ególatra?
Que outro país demonstraria tamanho inconformismo matizado de humor, para rir de seus próprios estigmas?
É no povo que está a salvação para uma vida melhor. Tudo o que precisamos é de um povo e de um belo lugar. O povo é o brasileiro e o lugar é o Brasil, assim como a felicidade, para Pablo Neruda, era a sua [Isla Negra]. Se o Chile ocupa hoje um grau de felicidade privilegiado entre as nações sul-americanas, o canto de Neruda tem muito a ver com isso. Foi a flor do seu canto, e não a baioneta de Pinochet, que fez daquele povo um combatente a serviço da própria felicidade.
Felicidade. Palavra fluida, abstrata, subjetiva. Que pode muito bem ser o ato de atravessar uma rua e chegar ileso. Dirigir numa rodovia federal e chegar vivo. Não precisar de esmola, nem de pedí-la. Votar em seres humanos dignos de sua tarefa de representação política e social.
A felicidade de um povo passa, é claro, por eleições bem conduzidas e escolhas bem feitas. Mas ela está, sobretudo, na índole de uma classe média que, por desfrutar de melhor situação financeira, entende e “assume” a responsabilidade de melhorar o país.
Há solidariedade numa comunhão de homens quando todos os que pensam podem se orgulhar da felicidade do maior, ou quando a miséria do mais pobre a todos enche de vergonha. Sem “esta” felicidade, não haverá lugar para outras.
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Sergio da Costa Ramos, escritor,natural de Florianópolis,Ilha de Canta Catarina. Membro da Academia catarinense de Letras, é um dos mais importantes e festejados cronistas do Sul do Brasil. Assina coluna de crônicas no Diário Catarinense (grupo RBS) e é autor de uma produção literária reconhecida no Pais.