22 de Março
Charlottesville, Virginia
Vim falar à Jefferson Society, uma das mais antigas Debating Societies dos EUA, fundada em 1825. Não fazia ideia do que esperar e deparei com uma verdadeira surpresa, como alias já o fora o próprio convite. Nunca tinha estado na Universidade da Virginia, onde Richard Rorty leccionou no Departamento de Filosofia antes de de cá sair e ir ensinar Literatura Comparada para a Califórnia. A Universidade foi concebida e desenhada por Thomas Jefferson, na fase final da sua vida, e teve nesse processo alguma colaboração do nosso Abade Correia da Serra, que naqueles anos andava por Washington e passava muito tempo em casa dele em Monticello, aqui nos arredores de Charlottesville. Mas sobre isso jea escrevi noutros lugares.
Chegámos cedo (a Leonor veio comigo) para aproveitarmos o fim-de-semana. O Vice-Presidente da Sociedade, McCulloch Cline, aluno do 2º ano, ofereceu-se para nos guiar numa visita à parte mais antiga da universidade, cuja arquitectura em estilo “federal”, de grande influência jeffersoniana, é por demais conhecida. Mas a escala é bem maior do que esperava. O que aquele moço sabia da história local deixou-me boquiaberto.
Na parte antiga do campus nota-se a preocupação em preservar até os quartos dos alunos, todos ainda com lareira (a lenha fica à porta de entrada). Um dos quartos é hoje museu, pois nele viveu Edgar Allan Poe, quando aqui foi aluno.
A direcção da Jefferson Society levou-nos a jantar a um restaurante no bairro antigo da cidade, que é um atraente espaço habitacional cheio de vida e cor. A conversa impressionou-nos pelo teor dos assuntos abordados e pela nível que revelou. Engravatados todos, tinham um porte descontraído, porém muito digno e a qualidade da linguagem saltava ao ouvido desarmado.
O mesmo estilo e porte fomos encontrar na sala da Society onde ia decorrer a conferência. Cheia, entre 40 e 50 membros, alguns professores, mas a maioria alunos. Quase todos de gravata e casaco escuro.
Tinham-me pedido um tema português porque nessa “Distinguished Lecture Series” da Society nunca ninguém tinha falado sobre o mundo lusófono. Por se tratar de uma sociedade jeffersoniana, gostariam que o assunto tivesse algo a ver com a modernidade, universo muito querido de Jefferson, grande fã do iluminismo. Pragmático nestas, coisas, aproveitei para sugerir falar-lhes do Canto V d’ Os Lusíadas, que acho um belo exemplo de como a nova mentalidade empírica adquirida com os descobrimentos tocou também Camões. Os meus alunos lêem esse canto todos os anos no seminário “No Dealbar da Modernidade”, todavia nunca tinha tido ainda a oportunidade de passar ao papel o que penso sobre o assunto e como o enquadro na escrita “moderna” produzida nos Descobrimentos.
Acertei na escolha. Vim munido de uma série de imagens em Power Point, porque elas sempre ajudam a manter a atenção do público. No entanto, ali para aquela assembleia nem teria sido preciso. Optei por não ler o texto escrito para o efeito escrevi e falei ilustrando a charla com as ditas imagens.
Choveram perguntas a revelar todas uma grande atenção e uma excelente cultura hiistórica (faz parte dos critérios de selecção dos membros, como já veremos). Todas muito directa e clarissimamente formuladas, sempre precedidas de um amável comentário à conferência. Mais ainda, sempre muito curtas; nada de rodeios palavrosos.
Terminada a minha parte, seguiu-se a reunião da Society para tirocínio dos candidatos a membros. Quis ficar para ouvir pelo menos a prova de um candidato (probationary).
Espantosa experiência. Um moço de Direito falou sobre um aspecto específico da Guerra Civil. Sem papel, desenvolveu com brilho e elegância o tema até a presidente dar uma martelada na mesa interropendo-o a meio de uma frase porque o seu tempo acabara. Seguiram-se os comentários de membros actuais, incidindo em dois aspectos: crítica de conteúdo e crítica formal. Nesta, até a colocação da voz recebeu reparos, sempre com sugestões positivas. Tudo feito com uma correcção e um ritual que… só video. Descontraído e formal, sempre em linguagem muito educada mas totalmente directa. A uma das perguntas, o candidato, depois de pensar uns segundos, disse simplesmente com um ar concentrado: Não sei responder.
A sessão começa sempre às 7:29 pm. Thomas Jefferson era muito minucioso e marcou assim para ser primeiro do que outra organizacnaoq ue começava as suas reuniões às 7h e 30m. A tradição mantém-se mas, como há alguma flexibilidade, anunciam então que ela começa “aproximadamente às 7h e 29m”.
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* Esta entrada de um diário (ocasional) inédito foi partilhada com alguns amigos e, da coordenação do “Comunidades”, foi-me pedida autorização de publicação.
** Fotos de Onésimo T.Almeida: Thomas Jefferson Society, Universidade da Virgínia, Charlottesville (Va)