(Georges Pierre Seurat 1859-91
Man on the Parapet)
O Eldorado
José olhou-se mais uma vez ao espelho. O rosto estava irreconhecível, cuidadosamente pintado com uma base branca, sobre a qual fizera os desenhos da “murga”[1] a que pertencia. Aquele era o ensaio final e dentro de poucas horas, o tablado[2] seria dele.
A sua ante-estreia fora no desfile inaugural do Carnaval, pela Avenida 18 de Julho, no segundo dia do mês de Fevereiro. Aí, pela primeira vez haviam entrado em cena os «Dioses Amarillos» (deuses amarelos), era esse o nome do grupo. Contudo, no desfile, dissolvido na multidão, não sentira o peso da responsabilidade, ficara com a sensação de que ninguém havia reparado na sua existência.
Era o concretizar de um sonho que lhe habitava a alma desde a mais tenra infância. Naqueles momentos esquecia todas as nuvens negras que podiam eventualmente pairar no horizonte do seu futuro, da sua vida: o que fazer? Onde arranjar emprego? Ainda havia tentado um curso de Humanidades na Universidade da República. Inicialmente, até foi às aulas e passou em alguns exames, mas depois começou a desmotivar-se e a pensar que o curso não lhe garantiria o pão do futuro. Sonhava ser um músico famoso ou talvez um actor… mas, provavelmente, o único palco a que teria acesso seria ao corredor dos autocarros urbanos, e o cachet que poderia ambicionar eram meia dúzia de pesos, que nem lhe chegariam para comprar um minúsculo pão.
A saída seria, pois, a emigração. O problema era sempre o mesmo: obter um visto. Se ao menos tivesse uma nacionalidade europeia… é que sendo latino-americano, habitante do tão badalado «terceiro mundo» todas as portas se lhe fechavam.
Fora algumas vezes à Embaixada de Portugal, pois tinha uma avó portuguesa, mas foi em vão, pois acabou por não conseguir a preciosa nacionalidade…
Mas o que importava era o momento: desfrutar aquele sucesso há tanto ansiado. Sentiu-se feliz, realizado, breve rei daquele palco de quimeras.
Dias depois, um vizinho chamou-o, quando estava sentado na Rambla de Pocitos, tomando mate e contemplando o rio-mar. Sempre que tinha tempo livre (o que sucedia muitas vezes, pois era difícil encontrar trabalho), ia fazendo o que aparecia: passeava cães, vendia alguns «recuerdos» no centro, ou artesanato na feira de Tristán Narvaja – onde havia de tudo, desde dentaduras, a, segundo contam, algum pinguim desprevenido, oriundo dos mares do sul, ou animais de estimação como cães, gatos, pássaros, etc. Levantou-se e aproximou-se do rapaz.
•- Olá, que tal? Tenho uma notícia bombástica para ti! Lembras-te da Rita? A loirinha que andava na tua turma na escola primária?
Ele revolveu por entre as teias da memória, mas não conseguiu encontrá-la.
– Acho que não, não me lembro… o que lhe aconteceu?
– Ela emigrou com os pais para os Estados Unidos há uns dez anos. Agora, um primo meu disse-me que ela nos arranja emprego para os três: eu, tu e o meu primo! Numa empresa de computadores. O salário é muito bom. Mas temos de partir dentro de uma semana, no máximo, caso contrário as vagas podem ser ocupadas e arriscamo-nos a deixar fugir esta magnífica oportunidade. Que te parece?
•- Pablo, parece-me fantástico – principiou, em tom céptico – mas tens a certeza? É que nem me lembro dela e parece-me quase um milagre, surgir assim um bom emprego caído do céu como granizo…
•- Temos que ter fé e acreditar na sorte. Então, falas com a família e compramos bilhete para daqui a quatro dias? Dia 18 de Fevereiro parece um dia de sorte, adequado para começar uma nova vida, não achas?
•- Mas… e o dinheiro para a viagem?
•- Ora, pede emprestado à família. Vamos ganhar 3000 dólares por mês, alguma vez imaginaste? Com o primeiro salário já consegues pagar o empréstimo. Vamos, Nova York espera-nos impacientemente!
Juan caminhou apressadamente, sugando o que restava do mate. Nem queria acreditar! Parecia que todos os seus sonhos se começavam a realizar: primeiro a actuação no tablado[3], depois o emprego que tanto desejara!
O dia da partida chegou apressado, num turbilhão de ilusões, surpresas, despedidas, lágrimas e sorrisos. O avião descolou ruidosamente, pairando primeiro sobre as vivendas de Carrasco e depois sobre o Rio da Prata, que acenava a sua despedida, num tom ocre, fusão dos preciosos elementos: água e terra. Foi com nostalgia que o contemplaram. Minutos antes, o aeroporto de Carrasco parecera pequeno para tanta ansiedade: a esperança também ocupava o seu espaço.
•- Será que voltamos? – indagou José, sentindo um aperto súbito no coração.
•- Não sejas tonto! Voltamos e com dinheiro suficiente para comprar uma vivenda em Carrasco, ou em Punta Carretas…
•- Eu contentava-me com um apartamento pequeno em Pocitos, sempre foi a minha zona preferida…
•- Vais poder comprar o que quiseres e onde quiseres – repetiu Pablo impaciente.
•- Claro, a partir de agora, os problemas financeiros acabarão. – atalhou Juan – A Rita disse-me que o emprego já era nosso, nem precisamos de ir à entrevista. Na próxima segunda -feira já começaremos a trabalhar.
•- Espero bem que sim, pois nem sequer temos visto de trabalho e os poucos dólares que levo apenas dão para pagar duas ou três noites num hotel em Nova York, na melhor das hipóteses. O resto foi tudo para a passagem…
•- Nem sequer precisamos de pagar hotel. O pai da Rita vai buscar-nos ao aeroporto.
Após a escala em S. Paulo, entraram no avião que os conduziria à cidade onde os sonhos germinavam e floresciam como malmequeres silvestres.
No entanto, a seguir ao desembarque, tudo se complicou. Após a observação demorada dos passaportes, foram interrogados repetidamente: Por quanto tempo vinham? Tinham familiares ali? Que lugares tencionavam visitar? Que quantidade de dinheiro traziam consigo? E onde tinham obtido aquele visto?
Iam respondendo no seu inglês atrapalhado com acentuada pronúncia, que eram turistas, tinham lá uma grande amiga, norte-americana… Aliás, ela deveria estar a aparecer para os ir buscar… A sessão era interrompida para fazerem mais um telefone para o número que a Rita lhes havia dado. Porém os apitos estridentes do telefone não tinham qualquer resposta e desaguavam na mudez silenciosa dum desespero cada vez mais aceso.
Não aparecia ninguém e o tempo ia-se esvaindo no pequeno cubículo do interior do aeroporto. Quando muitas e lentas horas se escoaram, ao ritmo doloso da agonia, foi decidido o seu imediato regresso ao país de origem.
De regresso a Montevideu, devolvidos, repatriados, pareceu-lhes mais pequena e menos utópica aquela terra prometida onde os seus sonhos deveriam ter ganhado cor e forma. Mas enfim, lá estava ele, o Rio da Prata, aquele manto de água mágica que tantas caravelas haviam cruzado ao longo dos tempos, onde tinham ancorado e desancorado todos os sonhos, e pesadelos, ilusões e desilusões, amores e desamores…
Assim, envolvido ainda pelo sabor amargo da derrota, naufragada a miragem do Eldorado, restavam apenas a José a música alegre e atrevida da murga, a branca pureza do jasmim florindo em pleno Dezembro, a linha do horizonte desenhada a ocre pelo rio-mar. Esse facho de esperanças, donde partiam e chegavam todas as histórias, todos os contos, todas as palavras de luz, de vida e sonho feitas.
Dora Nunes Gago in Contos do Rio da Prata (inédito)
[1] grupos que actuam no Uruguai, durante o Carnaval, satirizando vários aspectos da sociedade e os acontecimentos actuais mais relevantes.
[2] Recinto onde actuam as murgas
[3] Recinto ou palco onde «actuam as «murgas».