“A névoa foi crescendo instante a instante”
“A névoa foi crescendo instante a instante./ ./ Já não há mar nem céu” – escrevera José Régio – Por isso, Bernardo começou a usar sempre os óculos escuros, a última coisa que retira antes de se deitar. De todas as provações da vida, a cegueira, foi sem dúvida, a pior.
Ele, que fora médico, trabalhara em cenários de guerra, estivera presente em diversas catástrofes mundiais: no terramoto do Haiti, em 2010, no mesmo ano, no do Chile, antes disso ainda mesmo no Iraque.
Havia sido um verdadeiro “médico sem fronteiras”, tal como a sua dimensão humana também não tivera limites. Aliás, com todos os defeitos que consigo transportava, inerentes à condição humana, com todos os erros que cometera, o profundo humanismo solidário sempre fora a sua pedra de toque.
O seu primeiro campo de trabalho fora Benguela, em Angola. Por lá se apaixonara por uma mulata de olhar terno. Mas a família não a queria casada com um branco “portuga”. De brancos portugueses, já tinha conhecido o suficiente: o seu pai era um soldado português que havia abandonado a mãe dela grávida e partido para o seu país, para o seio da sua família, onde outros filhos o esperavam. Nunca se preocupara em saber sequer se ela vingara, se chegara a vir ao mundo ou que nome tinha. Aliás, o seu nome era Antónia, em homenagem ao tal António, que a concebera e sumira cobarde e misteriosamente.
Por isso, a mãe reagiu muito mal àquele namoro, prevendo já, para breve, ver a filha desamparada e solteira, a dar à luz uma “Bernarda”.
Só que após duros combates, o desfecho foi outro: Antónia acabou por partir em segredo com Bernardo e casaram. Ela tirou o curso de enfermagem e durante muitos anos trabalhou ao seu lado, percorrendo os múltiplos caminhos do mundo, sarando feridas, mitigando dores, travando a morte, fazendo nascer a vida. A isso se resumia o seu quotidiano. Eram Erec e Enide, literalmente unidos no amor e na guerra, contra tudo e contra todos.
No Haiti, no meio dos escombros, com o odor da putrefacção a colar-se-lhes na pele e a invadir-lhes as narinas, haviam feito um parto. No meio da tragédia, da morte, alcandorados no meio de pedras desfeitas, do pó e do zumbido dos mosquitos mortíferos, haviam feito triunfar o primeiro vagido da vida. E o sorriso daquela pobre mãe desfalecida valeu-lhes por tudo. Foi nele que descansaram a angústia e o mais profundo desespero.
Depois, foi a outra e ainda mais dura prova: arranjar alimento e água para manter aqueles dois seres, para que aquelas ténues chamas não se extinguissem. Partilharam a pequena porção de água que lhes fora fornecida e deram-lhes toda a ração de que dispunham.
Nessa noite, dormiram abraçados no mesmo saco cama da tenda de campanha. Alimentaram-se do amor que fizeram para esquecer a fome que lhes roía o estômago.
Antes, no Iraque, haviam ministrado morfina a um soldado dilacerado por um engenho explosivo. O sofrimento daquele homem era denso, espesso e negro como as profundidades de um pântano. Aqueles gritos desumanos eram imparáveis, apenas um leve fio de pele lhe segurava as entranhas. Nada havia a fazer. A impotência era total e o abutre misericordioso da morte tardava em colhê-lo nas suas garras. Por isso, aumentaram a dose do analgésico e finalmente, aquela pobre carcaça em carne viva pôde serenar. Fecharam-lhe os olhos, abraçaram-se e choraram longamente. O mesmo abraço com que celebravam a vida lhes servia de consolo perante a chegada da morte generosa.
Posteriormente, há quatro anos atrás, perdera a luz da sua alma: Antónia sucumbira a um cancro fulminante que a sequestrou sem aviso prévio. Empenhada como estava em salvar vidas, ignorou todos os sinais anunciadores da doença.
A partir daí, a vida perdeu brilho e sentido. Pouco depois, a degenerescência da mácula ocular lançou-o, pouco a pouco, na completa escuridão física também.
Nunca havia tido filhos, estivera sempre demasiado ocupado com a tarefa de missionário sem credo a não ser o da vida e do humanismo. Por isso, aquele Lar de Terceira Idade fora o seu porto de abrigo, quando pensara já haver há muito naufragado.
Agora, começara a aprender a ver com outros sentidos. Gostava de ouvir as histórias da “fada” como costumava chamar a Luzinha, uma contadora de histórias, que lhes iluminava, por vezes as tardes e dourava o nascer das noites. A sua voz mágica tinha o dom de o transportar para o mundo mítico de uma infância por inventar, despertando um passado mágico, enterrado na fímbria da memória.
-“Há muito, muito tempo, dizem….” – Era sempre assim que começava aquela voz melodiosa e as portas de uma montanha mágica, prenhe de mistérios escancaravam-se de par em par, sem que fosse sequer preciso dizer “abre-te sésamo” … E uma nova realidade germinava, lançando as raízes da esperança para instaurar uma nova e secreta Luz…
Dora Nunes Gago
In A oeste do Paraíso, Emooby, 2012 (adaptado)