[REINO MINERAL]
Quem te fez assim soturno
quieto reino mineral,
escondido chão noturno?
Que bico rói o teu mal?
Quem antes dos sete dias
te argamassou em seu gral?
Quem te apontou pra onde irias?
Quem te confiou morte e guerra?
Quem te deu ouro e agonias?
Quem em teu seio de terra
infundiu a destruição?
Quem com lavas em ti berra?
Quem te fez do céu o chão
Quieto reino mineral?
Quem te pôs tão taciturno?
Que gênio fez por seu turno
antes do mundo nascer:
a criação do metal,
a danação do poder?
Invenção de Orfeu,
Canto Primeiro, XI
[UM MONSTRO FLUI NESSE POEMA]
Um monstro flui nesse poema
feito de úmido sal-gema.
A abóbada estreita mana
a loucura cotidiana.
Pra me salvar da loucura
como sal-gema. Eis a cura.
O ar imenso amadurece,
a água nasce, a pedra cresce.
Mas desde quando esse rio
corre no leito vazio?
Vede que arrasta cabeças,
frontes sumidas, espessas.
E são minhas as medusas,
cabeças de estranhas musas.
Mas nem tristeza e alegria
cindem a noite, do dia.
Se vós não tendes sal-gema,
não entreis nesse poema.
Invenção de Orfeu,
Canto Quarto, poema I
[O CAVALO EM CHAMAS]
Era um cavalo todo feito em chamas
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.
Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.
Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.
Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.
Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.
Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.
Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.
Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o íncubo cavalo se nutria.
Invenção de Orfeu, Canto Quarto, poemas II e IV
[AQUI É O FIM DO MUNDO]
Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo
em que até aves vêm cantar para encerrá-lo.
Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo,
e nos vastos areais — ossadas de cavalo.
Entre as aves do céu: igual carnificina:
se dormires cansado, à face do deserto,
quando acordares hás de te assustar. Por certo,
corvos te espreitarão sobre cada colina.
E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto
que é debaixo dos céus, a mais triste canção),
vem das aves a voz repetindo teu pranto.
E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,
tangê-las-ás de ti, de ti mesmo, em que estão
esses corvos fatais. E esses corvos não vão.
Invenção de Orfeu, Canto Sexto, poema I
[ESTÃO AQUI AS POBRES COISAS]
Estão aqui as pobres coisas: cestas
esfiapadas, botas carcomidas, bilhas
arrebentadas, abas corroídas,
com seus olhos virados para os que
as deixaram sozinhas, desprezadas,
esquecidas com outras coisas, sejam:
búzios, conchas, madeiras de naufrágio,
penas de ave e penas de caneta,
e as outras pobres coisas, pobres sons,
coitos findos, engulhos, dramas tristes,
repetidos, monótonos, exaustos,
visitados tão só pelo abandono,
tão só pela fadiga em que essas ditas
coisas goradas e órfãs se desgastam.
Invenção de Orfeu, Canto Quinto, trecho final do poema VII
[AQUI FOI UM LUGAR DE CALMAS HORAS]
Aqui foi um lugar de calmas horas,
ali era a distância. Em cima o pássaro.
Na planta essa raiz, e agora a ausência,
agora esse tecido alinhavado
por entre unhas de dedos invisíveis.
Apagaram-se as coisas tintas com
o sopro das palavras: geografias,
paciências, velhos trigos, decisões.
Aqui era um sinal, ali um número,
em cima esse fagote, e o anzol das plantas
fisgando o grão já grávido de sumos.
Agora esses molares ruminando
amargores sumidos, sais de medos;
agora a linha preta, a fronte baixa,
a luz escurecida, as mariposas.
Invenção de Orfeu,
Canto Décimo, trecho do poema XVI
Sobre o poeta :Jorge de Lima
Parnasiano, modernista, regionalista, surrealista, místico e épico, o poeta Jorge de Lima nasceu em União dos Palmares(Alagoas) em 1893 e faleceu no Rio de Janeiro em 1953. Neste ano de 2013 celebra-se os 120 anos de seu nascimento e 60 de sua morte.
Filho de um rico comerciante,viveu com a família em Maceió, iniciou o curso Medicina em Salvador e concluiu-o em 1914, no Rio de Janeiro. Voltou para Maceió em 1915, e lá se dedicou a medicina, a literatura e a política.Anos depois,retornaria ao Rio de Janeiro onde, no próprio consultório médico, costumava reunir amigos como o poeta mineiro Murilo Mendes e os romancistas nordestinos Graciliano Ramos, alagoano, e José Lins do Rego, paraibano. No final dos anos 30, o consultório passou a ser usado também como ateliê de pintura, outra arte que passou a cultivar.
Jorge de Lima estreou na poesia com o livro XIV Alexandrinos (1914), todo composto de sonetos parnasianos.Em seus livros seguintes, Jorge de Lima aparece como autor modernista de timbre marcadamente regional. O grande destaque desse momento é o conhecido poema “Essa negra Fulô”.Em parceria com Murilo Mendes, ele escreve Tempo e Eternidade. No mesmo diapasão publica A Túnica Inconsútil, em 1938.Por fim, em 1952 Jorge de Lima traz a público Invenção de Orfeu, que é de longe sua obra mais ambiciosa. Nela estão apuradas e reunidas todas as grandes mitologias do poeta. Invenção de Orfeu é um painel de explorações oníricas e surrealismo e momentos épicos.
Multiartista, Jorge de Lima também escreveu romances e, nas artes plásticas, pintou, esculpiu, desenhou e fez colagens.
Fonte: www.algumapoesia.com.br
poesia.net Número 291 – Ano 11
de Carlos Machado