Zumblick liga o Sul ao Mundo
Ao entrar na dimensão mágica do mundo de Zumblick, por entre a ramada de traços simples, vigorosos e coloridos, ouve-se melodia. Nos quadros do Divino, esta musicalidade ancestral brota como nascente de vida e derrama-se em cantoria de foliões, gutural e monocórdica, a fazer ponte entre as ilhas de bruma e o novo mundo, num embalo colorido a violino e tambor.
As telas de ‘seu Willy’, menino de cem anos, são uma janela aberta ao Sul profundo. Retratos dum tempo sem tempo, contam a aventura ancestral de povos que trazem o Sul na alma. Nelas convivem culturas, razões de ser, opções históricas. Misturam-se o imigrante e o índio, o açoriano com o alemão, o turco e o italiano.
É desta gesta plural que nasce o Brasil. Mas em Santa Catarina há um nascer com Sul no sangue e sede de liberdade. Um parto com dor duma identidade marcada a ferro e fogo nas cores pujantes de Zumblick.
Esta intensidade cultural respira em cada tela e sobressai no momento de fascínio em que o nosso olhar se cruza com a magia do pintor de Tubarão. Zumblick e’ um figurativo, (mesmo quando tocado pelo modernismo), que pinta um povo plural nas origens, mas singular no destino histórico. No vigor do traco ‘borrado’ e impato da cor viva, transmite a força telúrica e beleza esfuziante que pulsa na remota interioridade dum Povo de Povos.
É que cada figura de Willy, mais do que uma personagem, é uma forma de sentir colectivo. Cada gesto, mais do que um fim, é um princípio a descobrir. Que o olhar de quem está retratado olha para algo e indica um caminho. Tal como a pomba é o Divino que liga o Antigo e o Novo, o proto-judeu e o cristão ligados por veredas do interior.
Estes são os caminhos de Zumblick. O artista que se definia como ‘pintor do interior’, hoje, cem anos depois do seu nascimento, é reinterpretado numa dicotomia onde a geografia das emoções se cruza com a espacialidade periférica do Sul. E esta interioridade dual, ao mesmo tempo austral e emocional, é em si um profundo carimbo identitário catarinense.
É esta marca de cultura que está espelhada em ‘Zumblick, uma história de vida e de arte’ da socióloga Lélia Nunes. Uma obra essencial para conhecer o homem que pintou a alma Catarinense. O livro, que acaba de ser lancado em segunda edição, revela de maneira brilhante e bem pesquisada o lado humano do pintor. E convida a um novo olhar sobre os quadros das Bandeiras do Divino, a temática mais recorrente de ‘seu Willy’.
As bandeiras púrpura são ponto de partida e de chegada onde o ritual secular se entrecruza com a mística simbólica do Espírito Santo. O ponto de partida é o profano, a festa, a celebração popular. Mas estes bandeirantes do divino não se limitam à ritualidade. Em Zumblick, eles partem em demanda do imaterial, do espiritual mais profundo, rasgando as fronteiras da religiosidade dogmática.
Willy seduz na simplicidade, mas desafia na linguagem implícita. Este alquimista do tempo e viajante dos sonhos tem um lado escondido, de código, de pequenos grandes símbolos com que nos surpreende e presenteia. É ele quem sorri por último na espera de cada olhar decifrador. É que se cumpre Zumblick não na imagem, mas na mensagem. Que o detalhe é uma chave para outras dimensōes.
Há em Zumblick um sentido de eterno. Tão eterno como o pensamento. Fazendo do ancestral um portal entre mundos e culturas. É assim que o traço do alemão mais açoriano do Brasil ganha universalidade. Que o gesto de cada figura, animado pelo sentir de quem vive o Sul, interliga culturas transmitindo uma profunda humanidade. E agora, em cada nova troca d’olhos com as suas melodias pintadas, vamos perceber que o menino não segura a pomba. É ela que o guia.