Cooperamando
Na magnífica quietude da ilha, o almoço tardio e o vinho francês convidavam à sesta, quando, de repente, uma cadeira, ousando o que nenhum pássaro ousaria àquela hora do dia, cruzou os ares e embateu nas palmeiras, fazendo cair os lagartos que dormitavam.
Caída na areia, Nazira berrava desalmadamente, enquanto Gibril alternava socos com puxões de rasta. Ela retribuía dentadas e pontapés, urros e murros, como se tomada por força bestial.
Acorreram a acudir. Os homens trouxeram Gibril para a mesa, onde nós, as mulheres, nos quedáramos, presas à cena. Vinha como doido. Dos dedos pendiam-lhe feixes de rasta que espalhava pelo chão e pela mesa, à medida que bracejava e praguejava: Putain de merde! Je vais te casser la gueule! (1). Encarnado, olhos salientes, ventas abertas, ofegante à beira da apoplexia.
Nazira fora levantada do chão e intensificara a berraria, cada vez mais roufenha, gutural. Num movimento feroz, solta-se dos braços que a seguram, alcança a mesa e desata a atirar copos e pratos e talheres à cabeça de Gibril que se defendia com uma cadeira a fazer de armadura.
A fim de evitar a devastação total de vidros e loiças, correu a buscar a mala de viagem da amada, preparada para a partida desde a chegada, três dias antes, e derramando os trapinhos da moça pelo chão, desatou a rasgá-los, esfarrapando-os um a um, com fúria de fera acossada.
Ao ver os preciosos vestidos feitos em tiras, Nazira, crioulando os dizeres mais abjectos: – Filho da puta! Bu ka pudi moka mas! Bu kulhon ka bali nada! Na kortal! (2) -, vai à cozinha e, empunhando a maior e mais afiada faca que encontrou, avançou para o homem com quem vivia há meia dúzia de anos – Gibril, o francês enamorado que se despojava de si para satisfazer os caprichos de ouro e de tesouros da jovem mulata, de toda a sua família, de amigos e amantes de aquém e de além ilhas.
A agilidade do ser habituado à defesa para a conquista intuiu nele o gesto de morte, levando-o a alçar mecanicamente uma cadeira de plástico que, não fora a prontidão dos empregados a sacar o cutelo das mãos de Nazira, teria ficado feita em duas.
Atraída pelo estardalhaço das loiças e dos gritos, a plebe juntara-se suspensa do acontecimento. Levaram Nazira aos berros para a praia, seguida das bajudas (3) e do baú de viagem, umas boas vestes mais leve.
O sol começara a aconchegar-se ao mar, que se havia ausentado da areia, impelido pela maré vazia. Nazira sentou-se, desfigurada. Sobravam-lhe algumas farripas de rasta a emoldurar o rosto congestionado. Aos cantos da boca acumulara espuma e fel. Os olhos faiscavam raivas e vinganças, agora mais acesas ao crepitar da fogueira que as miúdas tinham ateado. Tinha planeado dormir ao relento, mas mudou imediatamente de ideia ao sentir as primeiras bicadas dos mosquitos e o bafo húmido e fresco do sereno das noites de Janeiro.
Voltou para a casa de Gibril, com a comitiva atrás, e instalou-se na mesma cama onde fora iniciada a disputa, com Nazira a vomitar o almoço sobre Gibril, asco e desprezo acumulado.
Ele dormiu no alpendre, com o guarda, um olho fechado, outro aberto, não fosse o diabo tecê-las…
Arlinda Mártires
Arlinda Conceição Mártires Nunes nasceu em Alfundão, Beja. É licenciada, pela Universidade Nova de Lisboa, em Estudos Portugueses e Ingleses (1989), Ramo de Formação Educacional (1991), e fez Pós-graduação em Literaturas e Culturas dos Países Africanos de Expressão Portuguesa (UNL – 2003-2005).Publicou Além-Rio (Prémio Nacional de Poesia Raul de Carvalho, 1999), Guynea (poesia, 2004) e Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Dora Gago, 2004).mmmDe 1993 a 1998, foi leitora do Instituto Camões, na Guiné-Bissau, membro do GREC (Grupo de Expressão Cultural da Guiné-Bissau) e redactora/ revisora da revista de artes e letras TCHOLONA. De 2006 a 2008 foi professora de Português para Estrangeiros, dirigiu o Centro de Língua Portuguesa, no Rundu (Namíbia) e, entre 2008 e 2010, leccionou na Escola Portuguesa de Díli, Timor-Leste.