“É de linho o teu verso fiado no destino”
Sara completava naquele dia mais um aniversário. Nascera sob o signo de Escorpião, a oitava casa do zoodíaco, cujos nativos, segundo escreveu Aquilino Ribeiro em A Casa de Escorpião, são “irregulares, destemperados do génio e nem sempre lisos no proceder (…) amigos das coisas boas, proibidas ou toleráveis” … Se essas características lhe eram aplicáveis, supõe-se que nem ela própria o saberia, como sempre sucede com os ditados dos astros.
Sara enviuvara recentemente e chegara àquela casa havia poucas semanas. Os filhos e os netos visitavam-na com frequência. O marido fora um compositor conceituado, músico, que deixara uma obra considerável no panorama cultural nacional e internacional. Nos últimos anos, padecera de uma cirrose, motivada por alguns anos de abuso do álcool.
Ela havia sido professora no ensino secundário e poetisa. Tecera no dorso da palavra a sua música. Publicara mais de doze livros de poemas e alguns contos. No entanto, nunca fora famosa, nunca aparecera na televisão nem as luzes da ribalta lhe haviam, em momento algum, dourado a pele. Aliás, ela própria sempre considerara que Portugal sempre fora e era cada vez mais um país de “génios” refugiados no sótão e de medíocres famosos e idolatrados. O fantasma do Reino da Estupidez, tão criticado por Jorge de Sena, na obra com o mesmo nome, parecia ganhar contornos bem definidos. Seria legítima a observação? Ou uma forma de escamotear a sua frustração, de poetisa ignorada, apesar de ter escrito poemas magníficos, muitos deles publicados num blog com coniderável número de seguidores. Tinha plena consciência do seu valor literário, mas sabia que o seu nome não ficaria gravado no cantinho de nenhuma História da Literatura. Mantinha ainda entusiasticamente o seu blog, onde semeava diariamente diversos poemas. Permanecia virtualmente viva, no tecido denso das palavras, onde ecoava o eco das gaivotas, o marulhar das ondas e a brisa da maresia. Dos seus livros, talvez restassem alguns exemplares, esquecidos pela poeira do tempo, adormecidos e amarelecidos em prateleiras recônditas de livrarias à beira da falência.
Sempre se recusara ser vista como “a esposa do músico” e passara a vida inteira a libertar-se daquela sombra. A celebridade do marido havia-lhe provocado alguma inveja inconfessada. Nunca se aproveitara dessa circunstância. Procurou sempre manter a autonomia e a independência, nunca assinando com o nome de casada as suas obras, sempre fora a Sara Branco e assim seria. Se o amor e a arte avançavam tantas vezes numa fusão de sons e cores, as carreiras eram inteiramente independente. E neste compasso, haviam atravessado mundos, países, ilhas e arquipéagos, onde haviam vivido por breves meses ou cruzado apenas por poucos dias.
Todavia, agora que perdera o companheiro de uma vida – com quem partilhara a cama, a mesa, os sonhos e as desilusões, numa relação, inicialmente apaixonada, depois turbulenta, finalmente, alimentada pela solidariedade e por uma profunda amizade, filha da paixão inicial. Mais de uma vez se haviam separado, ficado meses sem se verem, mas tinham acabado sempre por se reconciliar. Diversas haviam sido as traições de ambas as partes, os amores e desamores, mas parecia que uma força maior os impelia sempre um para o outro -eram o exemplo típico de como os pólos opostos se atraem irremediavelmente. Por mais voltas que a vida desse, por mais erros que cometessem, o final era sempre o mesmo, como parecia suceder com um disco antigo riscado, daqueles que gemia sempre a mesma canção.
Eram tão complementares como as próprias artes que cultivavam: encaixavam perfeitamente como a música e a poesia, embora notas dissonantes muitas vezes provocassem uma fiada de desarmonias, fruto de uma orquestra desafinada. A verdade, é que era difícil viverem juntos, mas era impossível existirem um sem o outro.
Por isso, desde a morte dele, colara-se-lhe à alma uma tristeza pegajosa, húmida e penetrante que parecia tê-la amputado. Mais do que a infelicidade, esmagava-lhe o peito aquela implacável sensação de incompletude: perdera uma parte de si própria. Embora soubesse que não reencontraria jamais a sua unidade, procurava alívio em cada verso que construía. Cada vez mais, o mar que configurava através das palavras era tenebroso, turbulento, um novo e metafórico Cabo das Tormentas onde todos os seres humanos naufragavam inexoravelmente. Cada vez mais, era assumidamente contra o esquecimento, a passagem implacável do anos e a morte que escrevia, numa luta desesperada para permanecer, inscrever algures a marca da sua passagem, pois como lhe poderia ter dito Ary: “É de linho o teu verso fiado no destino”.
Dora Nunes Gago in A Oeste do Paraíso, Ed. Emooby, 2012 (modificado e adaptado)
Dora Nunes Gago é professora de Literatura na Universidade de Macau (China), doutorada em Línguas e Literaturas Românicas Comparadas. Foi leitora do Instituto Camões em Montevideu (Uruguai), professora do ensino secundário e investigadora de pós-doutoramento da FCT na Universidade de Aveiro.Publicou: Planície de Memória (poesia, 1997); Sete Histórias de Gatos (em co-autoria com Arlinda Mártires), 1ªed. 2004, 2ª ed. 2005;A Sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, 2007); Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga, Fundação Calouste Gulbenkian/FCT, 2008. Além disso, tem poemas, contos, artigos e ensaios em diversos jornais, revistas e antologias.