BENDITA SEJA A
SIMPLICIDADE DA INOCÊNCIA
A memória humana parece funcionar como uma espécie de “diário de bordo” da nossa existência. Ao longo da vida (falo por mim) ficamos cativos voluntários da sensação de que o tempo é um companheiro que veio do longe, e que se deleita na planície do presente, sem sequer descalçar as sandálias do passado…
Quando há dias observava o irrequietismo da petizada, numa dessas gigantescas lojas populares onde a ‘ilusão chinesa’ do preço barato faz parte do milagre pré-fabricado para o natal ocidental, senti um arrepio de saudade da famosa “noite-das-montras”, em Ponta Delgada. Para as famílias pobres (como era o nosso caso) o desfile infantil daquela noite era comparável ao calvário das “dores de carteira”…
Para as crianças do meu tempo (1945-1955) que viviam aspergidas pela bendita simplicidade da inocência, aquela era a ‘noite mágica’: o imparável acesso da pequenada até ao beiral das vitrinas ilustrava o ritual da inocência atarefada na sua ‘espontaneidade democrática’. Depois… é que o mandadeiro da realidade nos ensinava que, afinal, o ‘santaclôse’ não era o tal simpático bonacheirão da igualdade distribuitiva que a imaginação infantil sonhara. Mas isso faz parte duma estória mil vezes contada, que continua a ensombrar o modus vivendi do nosso quotidiano…
Até meados dos anos 50 do século passado (estou a circunscrever a minha referência à ambiência campestre da periferia micaelense denomidada ‘Rosto de Cão’) os nossos presépios ainda apresentavam sinais da autenticidade emocional recebida da herança franciscana: glorificação da pobreza material; centralidade temática na cena da sagrada familia – tudo isso envolvido pela meiga proximidade do burrito e da vaquinha… (sem esquecer a exemplar humildade então praticada pelos reis-magos)…
Naquele tempo, a maioria das residências rurais não disponha de luz eléctrica nem de água canalizada; nem a privacidade familiar disponha de ferramentas sofisticadas para disfarçar as suas carências existenciais. Exemplo: a alegria popular não pedia licença para entrar nos lares, onde a pobreza era perfumada pelos galhos de eucalipto, açucenas, glicínias; o perfume natalício era como uma lanterna mágica que contrariava o sombreado nostálgico da pobreza rural…
Antigamente, a pobreza material não era irmã-gêmea da miséria existencial. Claro que as familias pobres não tinham acesso às superfluidades simpáticas à mentalidade consumista. Mas falo por mim: as ‘serrilhas’ poupadas durante o ano davam para renovar parte da nossa colecção de bonecos natalícios oriundos de Vila Franca do Campo. Por outro lado, os aromas, as cores, o traçado ladeirento dos acessos ao presépio tinham de prever o efeito visual da ditadura da sombra resultante dos improvisados candeeiros de petróleo (que, mesmo assim, emprestavam realce à policromia oferecida pelas velas de cera).
Ora, como lá em casa eu era o mais velho dos irmãos, a partir dos dez anos fiquei responsável pela preparação dos materiais e consequente feitura do nosso presépio: colorir a serradura, seleccionar os bonecos; arranjar musgo fresco e resistente; escolher as verduras, os pedregulhos vermelhos para montar a cena da natividade; desenhar e recortar a estrela do oriente… sempre de “olho aberto” ao nosso cachorro – chamado ‘colarinho’ – para não escangalhar o presépio, devido à excitação visual provocada pelo cenário multívolo em construção …
Ah! Já me lembro: na nossa casa, não havia um claro consenso àcerca do perfil natalício da “árvore de natal”. A questão não era tanto a árvore em si, mas talvez a “despesona” exigida pela sua vocação essencialmente ornamentista. Além disso, havia a discutível percepção de que a ‘presença imperial’ da árvore de natal ameaçava contribuir para uma indesejável marginalização do presépio…
Na noite de Natal, o meu presépio era o ‘melhor do mundo’… Tudo ali fora preparado para enaltecer a natividade centrada na sagrada família. O resto era trabalho para a imaginação: as ruelas com peregrinos, os ranchos folclóricos, as ovelhinhas indiferentes ao reboliço dos pastores que iam ao encontro da “boa-nova”, enfim, tudo aquilo parecia caminhar na mesma direcção da caravana dos reis magos…
O Menêne mija? O Menêne mija! – eis o slogan mais ouvido naqueles dias. Não admira, quando chegava à hora da “missa do galo”, a maioria do pessoal já sentia os ‘calores’ oferecidos pelos licoristas da alegria. E até o prior da freguesia, transportando o menino nas meigas palhinhas, fazia esforço para verbalizar junto dos fiéis: “beija, beija, beija… o menino.” E todos aguardavam a sua vez para tocar os lábios naquele lindo bonequinho, o nosso Menino Jesus que, supostamente, nascera em Belém…
…/… parece que ainda oiço vozes a entoar melodias que fazem parte do nosso património emocional: gentes da nossa gente que, sob o relento da invernia, traziam a voz rouca mas o espírito afinado (perfumado) pela alegria esperançada do natal cristão:
“alegrem-se os céus e a terra / cantemos com alegria /
já nasceu o Deus-menino / filho da virgem Maria…”
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(*) João-Luís de Medeiros – Contabilista & Gestor de Recursos Humanos (sector privado da economia);
Poeta; ‘Guest-Columnist’ e Comentador na imprensa e rádio lusófonas. B.A.- Humanities & Social Sciences; M.S. – Human Resources Management.