Em Memória de José Medeiros Ferreira
O Amigo que entrou no apeadeiro errado com o relógio adiantado
O Amigo que entrou no apeadeiro errado com o relógio adiantado
Para a Maria Emília, companheira de toda a vida, e o Miguel, seu filho
Cristóvão de Aguiar
A morte temporã do meu Amigo José Medeiros Ferreira, no cume da força intelectual, ainda na posse de um raciocínio cintilante, de uma argumentação logicamente inflamada e de um humor inteligente – além de trágica e iníqua, abre fundas fissuras no plano da Justiça transcendental, só domiciliada na fé dos crentes: apressada, infalível, irremediável… Antes as abrisse, ainda no uso pleno da vida que o abandonou, na Justiça venal deste país por que tanto lutou e faz prescrever, na sua lentura, processos-crime e outros delitos que padecem da lepra da dilação… Não se compreende que só a primeira dessas “justiças” consiga uma celeridade extemporânea. Pressupunha-se que a outra fosse também veloz e de uma equanimidade à prova do fogo. Dependesse o meu Amigo da Justiça doméstica, e tenho a certeza de que se adiaria a do-ença e quando a ceifeira chegasse já a morte estaria pres-crita, proscrita…
Já quase tudo foi dito e escrito nos meios de comunicação so-cial sobre as facetas mais exteriores, mas relevantes, do ho-mem público que foi José Medeiros Ferreira – a de Político sa-gaz dotado de um sentido de estratégia e de previsão notá-veis, a de Professor Universitário, investigador, historiador e ensaísta de Portugal em Transe, do Oitavo Volume da História de Portugal, organizada por José Mattoso, de Não há Mapa Cor-de-Rosa, a história (mal)dita da integração europeia, o seu ultimo livro publicado em vida e de tantos outros de inegável valor político e histórico: O Comportamento Político dos Milita-res, a sua tese de Doutoramento, Os Açores na Política Inter-nacional, Cinco Regimes na Política Internacional, e muitos outros… Tal era o seu poder de previsão (e um político digno deve tê-lo, o que não significa adivinhatório, mas, sim, estar na posse de um conhecimento penetrante das ténues oscilações da realidade), que, em 1973, numa comunicação enviada do exílio, na Suíça, ao Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, sustentou, com a agudeza que lhe foi sempre intrínseca desde a juventude, que o regime estado-novista só poderia ser derrubado caso as Forças Armadas entrassem em acção. Cerca de um ano depois, cumpria-se o vaticínio. Tendo sido o primeiro historiador que se aventurou a publicar, em 1989, um livro sobre o 25 de Abril, intitulado Um Ensaio Histórico sobre a Revolução, logo daí se depreende a sua destimidez de vir eventualmente a ser acusado de es-crever história enquanto ela estava ainda decorrendo…
Peço desculpa por me citar. “Estou convencido de que os teus biógrafos sentirão, no futuro, alguma dificuldade em deslin-dar o motivo por que sendo tu um civil por dentro e por fora te devotas por inteiro a assuntos de natureza castrense ou com eles relacionados. Não é minha intenção falar para a His-tória, quem sou eu, mas posso dar a minha achegazinha, como diria o nosso velho professor de Literatura Portuguesa dos encantados tempos do Liceu da Ilha. Creio que não anda-rei muito desviado da verdade se aqui escrever que essa pro-pensão te está enraizada no pretérito perfeito do sangue. Pri-meiro, foste nado e criado em ambiente favorável: teu Pai, pertencente a uma força paramilitar, a Guarda-fiscal; mais tarde, teus irmãos mais velhos seguiram os estudos superio-res nas respectivas Academias, na Militar e na da Marinha; segundo, também tu, à semelhança de eles, te havias conven- cido de que era esse o rumo que te estava traçado desde o berço. Ditosamente, uma reviravolta interior, forte e impera-tiva, na passagem do velho quinto ano para o Curso Comple-mentar, veio pôr por terra um sonho de adolescência, que, a tornar-se verdade, ter-nos-ia presenteado com um excelente militar, mas subtraído o historiador que és. No teu livro en-contra-se subjacente a visão arguta do diplomata que a partir dos bancos do Liceu nunca mais deixaste de ser. Parecendo que isto de militares pouco vão além das respectivas casernas (o que não deixa de ser válido para grossa fatia dos seus membros), vieste, com a tua tese, demonstrar que a Institui-ção, no seu todo, é de tal arte relevante que estudando-a a sério se tem forçosamente de dissecar e interpretar a comple-xidade do País de onde ela promanou. Exactamente o que fi-zeste. “O Exército é o espelho da Nação”, já dizia a propa-ganda salazarista nos inícios de sessenta…” (in Nova Relação de Bordo, Dom Quixote, pp. 6/7)
Nesta minha evocação e invocação irei, daqui em diante, cal-correar um percurso mais íntimo e mais chegado à minha ín-dole por natureza menos racional do que sentimental e afec-tiva, oposta à do meu companheiro e Amigo. Talvez por essa razão nos encaixávamos bem: cada um a funcionar como contrapeso do outro, ao mesmo tempo complementando-se e completando-se.
Meu Amigo e conterrâneo, nascido por casualidade no Fun-chal, em 20 de Fevereiro de 1942, fomos colegas colaços a partir dos bancos do Liceu Nacional de Ponta Delgada, que frequentámos até ao antigo sétimo ano, hoje 12º, ele a partir do terceiro (nos primeiros dois, estudara no Externato de Vila Franca do Campo, onde o Pai, Guarda-Fiscal, tinha ao tempo sido colocado); eu, desde caloiro mais o Viriato, com uma du-pla detença no terceiro ano, o início do 2º ciclo, por ter tido algumas dúvidas nas matérias leccionadas, que o Viriato ul-trapassou, contrariedade que redundou em meu próprio be-nefício, porquanto o Ferreira, como então era conhecido, em vindo da Vila matricular-se no Liceu, passou a ser meu co- lega de turma, situação que se manteve até ao último ano. Estabeleceu-se de imediato uma corrente de empatia entre ambos e por meu intermédio com o Viriato Madeira, nessa altura já no quinto ano, mas que viria a esperar por nós (pelas mesmas razões que atrás aduzi a meu respeito) pela nossa subida de dois degraus, a fim de ficarmos no mesmo patamar… Antes dessa ascensão, porém, já andávamos os três juntos, quer nos intervalos, quer durante a pausa mais longa do almoço ou lanche, que trazíamos de casa e tomáva-mos ao ar livre, se o tempo deixava, ou debaixo dos telheiros dos pátios do palácio do Barão da Fonte Bela, onde estava e está sediado o Liceu. Éramos de fora da cidade, uma carga pejorativa nos anos cinquenta, oriundos de famílias de pou-cas posses, vínhamos todas as manhãs e regressávamos to-das as tardes a cavalo na camionete da carreira, cada um para o seu destino: Fajã de Cima (Ferreira), Ribeira Grande (Viriato) e Pico da Pedra, este que agora está com o dedo indi-cador a matraquear no teclado do portátil…
Quanto à naturalidade do Medeiros Ferreira, Ponta Delgada ou Funchal, dizia ele muitas vezes: “Nasci no Funchal, onde meu Pai prestava serviço, mas, aos dois meses de idade, aca-bada a comissão, a família regressou à origem, Ilha de São Miguel; regressámos no Carvalho Araújo, mas no navio via-java um passageiro clandestino, eu próprio, devido ao facto de o meu Pai me não ter registado na cidade onde nasci; de-pois de chegarmos a São Miguel, ele, que sempre foi muito estrito no cumprimento da Lei, pertencia ao reino militari-zado, foi registar-me em Ponta Delgada, como nascido no Funchal, o que me tem criado alguns problemas, uma vez que, sempre que necessito de documentos tenho de recorrer ao Registo Civil do Funchal; tão cumpridor, tão cumpridor, que me trouxe clandestino da Madeira, aos dois meses de idade, num navio, rumo a São Miguel; acho que foi premoni-tório esse estatuto clandestino que meu Pai me outorgou e me cai a preceito… Fui baptizado na Fajã de Cima; podia ele muito bem ter declarado que eu havia nascido nessa fregue- sia, não violava mais a lei do que já a tinha transgredido; mas, apesar de madeirense, considero-me como nascido na Fajã de Cima, micaelense de gema, portanto, nem de outro modo conceberia que fosse …”
Logo principiou o Ferreira a dar nas vistas entre a malta do Liceu. O seu poder oratório e persuasivo veio ao de cima, e era vê-lo a pregar para um cacho de alunos que o rodeavam, consolando-se a ouvi-lo e a rir à gargalhada do seu humor, por vezes mordaz, mas sempre inteligente e fino. Falava de tudo, futebol incluído. Era um grande adepto do Benfica, cuja direcção actual lhe enviou uma coroa de flores no dia do fu-neral, lia com entusiasmo o jornal A Bola, muito bem escrito nos anos cinquenta do século passado, e não surpreende, pois fora fundado e dirigido por Cândido Oliveira e Ribeiro dos Reis, um ano após ter o primeiro sido libertado do Tar-rafal, onde permaneceu, como preso político, de 1942-1944. Nessa altura (meados dos anos cinquenta) o jornal publicava-se bissemanalmente e depressa chegava à Ilha. Sublinhei acima grande adepto de caso pensado: não terá sido o nome do programa Grandes Adeptos, transmitido pela RDP, de que Medeiros Ferreira fazia parte, sugerido por ele próprio? Se-gue-se que a leitura enfronhada do jornal, com imagens e metáforas a que não estávamos habituados, não só o influen-ciou a ele como aos dois amigos íntimos, a tal ponto de o professor de Português ter passado a notar que as nossas re-dacções, nos exercícios de apuramento, eram escritas de uma maneira pouco usual, sendo, por vezes, uma ou outra, lida em voz alta na sala de aula, quando o professor no-los entre-gava… Eram as metáforas de A Bola…
O ano das eleições do General Humberto Delgado! Realizadas a 8 de Junho de 1958, três dias antes do fecho das aulas, a 11 de Junho, férias de ponto do exame mais difícil do curso liceal, foi em meados de Maio um período de grande azáfama, meio clandestina, que o pessoal menor do Liceu (assim era designado pela hierarquia) podia dar e dava algumas vezes com a língua nos dentes… As “sessões” eram efectuadas no Campo de Jogos, à hora do almoço, onde estanciavam os alunos de fora da cidade, quase todos mais novos. Neste caso concreto, eu e o Ferreira tivemos uma divergência “política”, não insanável: a amizade não foi beliscada. Como católico e militante da JEC (Juventude Escolar Católica), o Ferreira não alinhava pelo Delgado. Na “catequese” que ministrava aos mais novos, declarava que o General Delgado era como os Fi-lipes de Espanha, Reis de Portugal durante sessenta anos de cativeiro: prometiam, o céu e a terra, mas nada de cumprirem as promessas feitas… Quanto a mim, já descrente nos ensinamentos e dogmas do catolicismo (não porque fosse um génio em questões metafísicas ou teológicas, mas, sim, por um bambúrrio familiar), todavia menos ginasticado intelectu-almente do que o meu amigo e muito menos persuasivo, ia fa-zendo o que estava ao meu alcance, e era pouco: não seria tão caloroso nas prédicas, farto estava eu de saber que ne-nhum de nós podia apresentar-se numa secção de voto e in-troduzir o boletim na racha da urna… Mas o Ferreira, já com o seu espírito de estratega a funcionar, insistia, dizendo que os filhos transmitiam aos e pais e estes, se estivessem ins-critos nos cadernos eleitorais, poderiam seguir os seus con-selhos: votar contra os Filipes… O Viriato já lia e relia, nessa altura, Eça de Queirós, e sentava-se numa banqueta de pedra apartada, imerso na leitura e comendo sandes em papo-se-cos, mandando bugiar a catequização política… Pouco tempo depois, pegaria a doença da leitura do Eça aos dois Amigos, que constituíam o triunvirato do Liceu de Ponta Delgada – a tróica ainda estava muito longe de vir governar este País com um programa de desajustamento…
A grande reviravolta na vida interior do Medeiros Ferreira vi-ria a consumar-se no nosso sexto ano do Liceu. A aprendiza-gem da Filosofia ajudou o volta-face completo do seu espírito já mui esclarecido e combativo. As discussões intelectuais acaloradas logo principiaram, a JEC foi posta de lado, negada a crença em Deus, a política iniciou a sua ascensão ao ponto de ele realizar espécie de comícios no recato dos alpendres, nos intervalos das aulas ou nos furos abertos por os professo-res fazerem gazeta, os colegas e outros alunos, em magote, a ouvirem-no, com uma atenção aguçada e um silêncio sigiloso, não porque entendessem o que estavam escutando, mas pela magnética fluência do verbo, a rítmica ginástica do raciocínio de uma notável agilidade, mesclado do seu humor sempre fino e elegante… O padre de Moral e Civilidade não deve ter gostado do que lhe chegara aos ouvidos: chamou-o ao gabi-nete e descongratulou-se, vivamente, com a mudança tão sú-bita do seu pupilo e aluno, membro da JEC de que o ecle-siástico era o mentor. Tenho a impressão de que chegou a falar com o Pai, mas, que se saiba, nem repreensão agravada houve… Tudo quanto ficou atrás lavrado mais não constituiu do que um tirocínio para o que viria acontecer dois ou três anos mais tarde, já aluno do Curso de Filosóficas da Facul-dade de Letras de Lisboa desde 1960. Tornou-se um dirigente académico de relevo, Presidente da RIA (Reunião Inter-Asso-ciações), orador de grande mérito nas assembleias estudan-tis, aquando da eclosão da Crise Académica de 1962. Não era qualquer jovem chegado dos Cafundós de Judas, que eram os Açores nesse tempo, que se salientava numa Academia bem fornecida de estudantes bem preparados e com muito tra-quejo político e oratório, vide Jorge Sampaio, futuro Presi-dente da República, só para nomear um dos mais conceitua-dos, a quem Medeiros Ferreira sucedeu na Presidência da RIA. Repito: não era para qualquer… Expulso das Universi-dades Portuguesas, acabou por ir malhar com os costados à cadeia da PIDE, onde sofreu, durante três dias e três noites, a tortura do sono, mas não deu pio… Mais tarde, acabado o Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra, foi promovido a Aspi-rante a Oficial. Ainda foi passar a São Miguel as férias de mobilização para, depois, seguir para a Guiné. Ao chegar a Lisboa, já Alferes, desertou para a Suíça, onde terminou o curso e foi professor na própria Universidade onde se matri-culara. Regressou a Lisboa no período do 25 de Abril de 1974, iniciando a sua vida política, sendo, aos trinta e cinco anos de idade, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Pri- meiro Governo Constitucional. Foi ele que principiou a nego-ciar a adesão de Portugal à então CEE (Comunidade Econó-mica Europeia). No dia seguinte ao da sua morte, um jornal escreveu, em primeira página, que tinha morrido o pai da nossa entrada na Comunidade Europeia, lugar-comum repe-tido até à saciedade, de que o meu Amigo talvez não gostasse.
Regressando ao Liceu. Uma das professoras que melhor com-preenderam e influenciaram Medeiros Ferreira terá sido a D. Alba Monteiro, docente de Filosofia (nesse tempo, no Liceu de Ponta Delgada, as senhoras, mesmo licenciadas, não eram chamadas Doutoras, só os homens, tal era a mentalidade e o machismo em vigor). Vinda do Continente, era jovem, jovial, desinibida, daí nunca ter cavado qualquer fosso entre profes-sor e aluno, como acontecia com a maioria dos seus colegas, erguidos em seus pináculos de requentada sabedoria, sempre de cara feita, distantes por precaução, não fosse algum aluno mais curioso e atrevido fazer-lhes alguma pergunta ou escla-recer uma dúvida cuja resposta não constava dos compên-dios de sentido único – a D. Alba Monteiro, como dizia, man-tinha longos diálogos com os alunos (as suas aulas eram conversas dialógicas), nos quais intervinha e desbancava o Medeiros Ferreira, o melhor aluno de Filosofia da turma. Lia muito, interessava-se por Literatura, Política, Cinema (chegou a proferir conferências na Biblioteca do Liceu sobre a sétima arte), tendo os dois amigos que com ele formavam o triunvi-rato, oferecido, a meias, no dia do seu 17º aniversário, em 1959, um livro de Georges Sadoul, História do Cinema Mun-dial. Toda a sua actividade intelectual não o impedia, po-rém, de gostar de futebol e de ler sobre este desporto (era um intelectual desempoeirado), de que sempre foi um grande adepto. Do Benfica, mas sem facciosismo, só entrava no gozo com os outros dois Amigos, que pertenciam à família sportinguista!
Nas férias grandes (muito longas eram elas, cerca de três me-ses; hoje seria impossível interregno tamanho de costas di- reitas e livros semifechados, dormitando no ventre das pastas de couro. Esta aldeola tão globalizada, submergida na pressa e no infernal frenesim do dia-a-dia, não o permitia. Nas férias do Verão do nosso sexto para o sétimo ano, livres de exames em Junho /Julho (haveria no seguinte, como acontecera no anterior), já com a Universidade a acenar-nos da lonjura atlântica, fomos para as nossas freguesias, menos o Viriato, que vivia na Ribeira Grande, Vila Cidade, como era então de-signada, no lugar-comum das folhas jornalísticas do tempo (muitos anos mais tarde veio a alcançar o estatuto de civitas, mas logo passou a Cidade Vila…) – nesse intervalo feriado de 1959 e como as distâncias entre as três localidades eram quase intransponíveis no complicado universo da Ilha, pas-sámos os três a cartear-nos praticamente todos os dias. Não eram bilhetes, mas longas missivas de três e mais páginas de papel de trinta e cinco linhas. Constituíam exercícios literá-rios, o Eça de Queirós a espreitar, a lente do lorgnon, fais-cante e irónica, por cima de cada linha escrita, cheirando ao seu suor… O Medeiros Ferreira metia, e muito bem, a sua colherada filosófica, afirmava que a morte não existia para os jovens como nós e que Deus era uma ficção inventada para manter o Povo dentro dos varais e os padres o poder mandar para o suplício eterno se não obedecessem aos grandes se-nhores feudalizantes… O Viriato lia na altura um livro de um autor inglês, ex-padre católico, O Padre, a Mulher e o Confes-sionário, do qual transcrevia passos nas suas cartas. Além do Eça, lia o que lhe vinha à mão: Stefan Zweig, Jorge Amado, Gorki, Erich Maria Remarque, Hemingway… Descobriu, pra nosso espanto, qual tinha sido o verdadeiro crime do Padre Amaro: o ter mandado matar o filho pelas mãos de uma tece-deira de anjos, ama a quem o sacerdote foi entregar a cri-ança… Eu, mais inclinado para o romantismo, lia poesia, compunha versos suspirosos de pé quebrado e namorava, de janela, com a filha da vizinha do lado de cima… Uma dia, numa carta endereçada da Fajã de Cima para o Pico da Pe-dra, o Ferreira, entre muitos sacrilégios, escreveu este: “Nós, os ateus temos muitas responsabilidades na…” Fiquei exan- gue com o choque. A freguesia mudou de cor e eu fugi para o fim da quinta, com um peso no peito. Tudo, porém, passou e reveio ao normal… A Abertura Solene das Aulas, no Liceu, calhava no primeiro de Outubro. Era uma espécie de missa enfadonha, só faltava o latinório: “Vão para Deus, para a Sua Misericórdia, os nossos agradecimentos pelas graças e favo-res dispensados ao nosso labor durante o ano findo e para Ele vai também, na festa inaugural de um novo ano lectivo, a nossa prece pela continuação da Sua protecção ao trabalho que hoje começamos. Uma saudação especial me cumpre di-rigir ao novo Chefe da Nação, Senhor Almirante Américo To-más, recentemente escolhido, pelo consenso da maioria dos portugueses…” O Ferreira sussurrou ámen e eu, que não gostava de missas salazaristas, deixei-me, por fim, ficar ateu! Ainda ouvi, já sem ouvir, mais um passo da alocução reitoral: “O Estado Novo Corporativo tem-se empenhado na tarefa de “reaportuguesar” Portugal, repondo nos seus devidos lugares os valores nacionais que, por virtude da acção deletéria exer-cida durante largos anos pelos tristemente célebres “partidos políticos”, que se iam subvertendo por completo. À Mocidade Portuguesa compete auxiliar a acção do Estado neste ale-vantado propósito…” Continuou a lengalenga patriótica, mas nós os três já tínhamos saído de fininho do Ginásio. Fomos para um canto fumar um cigarro e até o Ferreira, que não fumava, pediu um cigarro, mas logo se engasgou e ia lan-çando o que comera e já tinha digerido…
Um dia, numa aula de Moral, o professor estava a escrever, no quadro, frases em Grego de grandes teólogos, que ajuda-vam, segundo a sua abalizada opinião, a provar a existência de Deus. O Medeiros Ferreira aproveitava estas aulas monótonas para ler, meio às escondidas, Eça de Queirós, o livro em cima das pernas unidas para não dar nas vistas e não ser expulso da aula. Dava gosto escutar-lhe as gargalhadas que lhe saíam, frescas e francas, ao ler certos passos de qualquer livro que lia do genial escritor. Não fazia parte do programa de Literatura. Na bem fornecida Biblioteca do Liceu, as estantes tinham portas de rede e eram fechadas a sete chaves. Só quem as podia abrir era a auxiliar da Biblioteca, a menina Espírito Santo, a Bibi, para os mais íntimos. Aos alunos do sexto e sétimo ano de Letras fechava os olhos e satisfazia-lhes o apetite de ler autores do índex liceal. O Viriato era muito seu amigo, bisbilhotavam ambos sobre as fraquezas de certos professores. Um dia afirmou-lhe ela, em voz baixa, que o Doutor Armando Côrtes-Rodrigues, amigo de Pessoa e um dos Poetas do Orfeu, se via e desejava para corrigir os versos de certos ilustres professores da casa que vinham mostrar-lhe as suas produções poéticas para que ele as apreciasse. Dizia a Bibi que chegava a casa e vomitava, tal eram os engulhos estomacais… A imprensa local, porém, e após tais poetas darem a lume os seus livros, tecia grandes encómios – mais uma glória poética para a Ilha do Arcanjo… Mas, e voltando à aula de Moral, uma colega que ficava na carteira ao lado da do Ferreira bichanou-lhe que numa determinada palavra grega escrita no quadro lhe faltava um espírito, logo o Medeiros Ferreira, ainda enfronhado no livro de Eça, se levantou e disse ao professor exactamente o que a colega lhe tinha transmitido: “Senhor padre, naquela palavra falta um espírito”… Acto contínuo: “Senhor Ferreira, rua!”
Apresentou-me alguns livros, quer em Lisboa, quer em Ponta Delgada, quer na Povoação, Ilha de São Miguel. Em todas as apresentações demonstrou uma sensibilidade literária que eu desconhecia. Habituado a ler os seus livros de índole histó-rica e política, nunca pensei que tratava a prosa de ficção como o ensaio político e histórico. Pena foi que ele nunca ti-vesse escrito as suas intervenções. Levava consigo umas no-tas e a partir delas construía o seu discurso. Por vezes pro-metia-me que as ia passar ao papel, mas nunca tal aconte-ceu. Transcrevo um passo do meu agradecimento à apresen-tação de um livro meu em Lisboa: “Desde os bancos do Liceu que temos vindo a conjugar uma amizade construída de inú-meras intermitências que a vida nos foi decretando, mas sempre pronta a ressurgir, com a intensidade original, em ocorrências assinaladas, tanto para o bem como para o mal. Esta é uma delas. Uma das muitas que têm tido o concurso do meu Amigo Medeiros Ferreira, que sempre teve o dom de espevitar o lume da palavra para com ela arquitectar um ra-ciocínio sólido e límpido e uma capacidade invejável de inter-pretar com sinceridade e sem lisonja os livros que tenho vindo a publicar. Foi ele quem há muito afirmou, por escrito, que havia sido Cristóvão de Aguiar o primeiro escritor ilhéu a dar dignidade literária ao léxico micaelense.” No anfiteatro da Vila da Povoação, apresentou-me a Relação de Bordo. Após a apresentação, falou o então Presidente Governo Regional dos Açores, Carlos César. A seguir foi a minha vez de agradecer. Espraiei-me, em texto escrito, em considerações pouco católi-cas sobre a Ilha do meu tempo, da influência religiosa nega-tiva sobre o Povo, e muitas outras blasfémias verdadeiras… Ao concluir a leitura, o Ferreira e o Carlos César foram unâ-nimes em afirmar que o meu texto tinha sido de escacha pes-segueiro. O anfiteatro estava cheio. O Presidente da Câmara instituíra como princípio que cada pessoa do público assis-tente tinha direito a levar consigo, grátis, um ou mais livros para oferecer à família ou aos amigos que lá não tinham po-dido ir. Deste modo, enchia-se sempre o anfiteatro. A Câmara Municipal, que pagava os livros, achava que fazia um bom in-vestimento ao proceder desta forma original. No meio da as-sistência encontravam-se três freiras. Acabada a sessão, as pessoas principiaram a descer pelos corredores do anfiteatro em direcção à mesa, para que eu autografasse o livro. Ao ver aproximar-se as três irmãs com os respectivos livros na mão, deu-me um arrepio pela espinha acima… O que iria eu escre-ver-lhes no livro? Com as irmãzinhas cada vez mais perto da mesa, perguntei, aflito, ao Medeiros Ferreira: “Que achas que devo escrever?” Resposta pronta: “Ide e pregai a Boa-Nova…”
***
Vi-te pela última vez, meu querido Amigo, num dos programas televisivos do “Eixo do Mal”, transmitido em Fevereiro, se me não falha a memória. Foste, nesse Sábado, preencher a au- sência da Clara Ferreira Alves. Mostravas já fortes sinais do mal que te havia de levar de entre nós. Assisti a uma lição doutoral sobre a Europa, matéria em que eras Mestre. Doutoral no sentido da profundidade do conhecimento. As tuas palavras foram, como sempre, de uma nitidez mediúnica. Os outros co-mentadores residentes encheram o estúdio de um silêncio res-peitoso. Sabiam que estavam em presença de alguém não só exímio nas palavras, como igualmente na clareza de ideias, na destreza de raciocínio e na sabedoria. Até fizeste humor. Um mês e pouco antes da morte, que sabias te vinha buscar. Cerca de duas semanas mais tarde, telefonei-te. Era o teu 72º ani-versário. Não respondeste. E foi então que entendi tudo! Não tive coragem de ir ver-te a Lisboa. Mas tive-a, vê lá tu a con-tradição, de ir velar-te no Palácio Galveias. Fraquezas huma-nas. Do triunvirato do nosso Liceu, só resto eu. Mas a tróica ainda continua e continuará… Até qualquer dia, Amigo.
Cristóvão de Aguiar
Lisboa, 20-23 de Março de 2014
Foto: http://www.ensino.eu/ensino-magazine/janeiro-2013/entrevista/somos-governados-pelo-culto-da-imagem.aspx