Entre a Espera e a Promessa
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Nuno Costa Santos
Adelaide Freitas (n.1949) é uma das vozes que, situando-se entre os territórios nem sempre dialogantes da academia e da produção literária, mais têm contribuído para a definição de um pensamento estruturado e rico – fundador de sentidos – sobre a identidade açoriana. Se quisermos, uma das originalidades da autora está na confluência do discurso de várias linguagens: a académica, a crítica, a narrativa e a poética. Usando uma formulação, podemos dizer que, ao lermos os textos de Adelaide sobre os Açores, a literatura açoriana ou a identidade feminina, percebemos e sentimos que estamos perante a prosa de uma artista. De alguém que transformou o conhecimento acumulado de uma forma única, irrepetível, filha de uma sensibilidade criadora e criativa.
Essa dimensão fecunda está muito presente nesta colectânea de textos, “Nas Duas Margens: da Literatura Norte-Americana e Açoriana”, apresentada emocionadamente numa nota inicial pelo seu marido e companheiro de navegações várias, Vamberto Freitas, também ele figura central na elaboração teórica sobre o imaginário da escrita açoriana, como “o último livro da Adelaide (…), ensaios e escritos que ela (afectada por uma doença) queria deixar nesta precisa sequência”. Em feliz hora foi editado este volume, diga-se – assim puderam ficar fixados num único livro alguns dos ensaios mais importantes da autora (entre 1989 e 2003), desta forma mais facilmente acessíveis às novas gerações de leitores e pensadores interessados nas temáticas literárias açorianas. E, é claro, nas pontes que, pela escrita e pela vida, têm sido construídas entre o arquipélago (um lugar não só geográfico como também simbólico) e outros territórios.
Este é um livro de refrões. De passagens que se repetem, assumidamente (a autora fala disso no prefácio), como quem espalha lembretes identitários pelos textos. Notas que nos remetem para um desenho próprio do arquipélago, um lugar que nos aparece nas suas múltiplas dimensões: como um lugar de solidão mas também de reencontro, um reduto ao mesmo tempo de esquecimento e de confluência de mundos, onde convivem o sentimento de orfandade, o naufrágio e a possibilidade de redenção. Um lugar raro e misterioso, apresentado pela prosa de quem o conhece em profundidade, além da superfície dos postais e dos anúncios: “Requerem as ilhas ‘o profano’, enquanto vulcanicamente protegem e amparam a casa dos deuses. São ilhas infalivelmente imprevisíveis e eternamente provocadoras”.
Aqui chegamos a uma dimensão essencial do livro: o seu comprometimento. O comprometimento de quem ama. Tudo parte, naturalmente, de um grande amor à terra. Que por vezes se transforma em admiração ou em respeito – o respeito pelo seu lado oculto, pelos segredos que encerra, pelos sonhos que alimenta. Um amor maior que incide sobre um território conhecido e compreendido na sua profundidade e nos seus humores pela autora: “Está ainda num céu sempre incerto, irrequieto e feiticeiro de constantes alternâncias de luz e de sombra, num jogo permanente que apaga, esbate e distancia montanhas e desfiladeiros, para logo as desocultar, aproximar e revelar-lhes o pormenor e a espessura”.
O comprometimento afectivo revela-se também na reivindicação de uma autonomia literária – necessária para a afirmação de uma identidade própria. Um conjunto de vozes das ilhas ou à volta das ilhas que não as tornem dependentes dos olhares exteriores. É neste contexto que surgem tantos nomes e autores – alguns deles “de fora” mas cuja respiração é a de quem está de dentro. Sim, também estamos perante um livro sobre autores. Os autores que partilham um mesmo imaginário: o imaginário açoriano, ao longo das últimas décadas tantas vezes evocado e tantas vezes refutado. Gente que escreve nas ilhas e fora delas. Portugueses e estrangeiros. Escritores discretos e nomes sonantes. Gaspar Frutuoso, Vitorino Nemésio, Raúl Brandão, Daniel de Sá, Urbano Bettencourt, Eduardo Bettencourt Pinto, Onésimo Teotónio Almeida, Rui Machado, António Tabuchi, Romana Petri, Katherine Vaz. Adelaide põe todos à conversa – talento seu – e nomeia-os como quem nomeia membros de uma mesma família.
E há a baleia, lembrada em vários instantes e recuperada no último capítulo (um dos mais belos do conjunto), que vem clamar pelo fim do esquecimento do Atlântico e das ilhas que nele habitam. O bicho que com o seu canto chama o continente para uma realidade que teima em ignorar, numa “atlanticidade desde há muito adiada” – para que o mar, vital, necessário e desafiador, não se transforme no “deserto de água” lamentado pelo poeta florentino Roberto de Mesquita. A baleia, com o seu melancólico lamento a apelar ao reencontro da humanidade no espaço privilegiado da ilha e para a necessidade maior de apurar os sentidos, raros e necessários, “da escuta e da espera”.
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Sobre Nuno Costa Santos:
Nuno Costa Santos nasceu em 1974.Açoriano. É uma expressiva Voz da nova geração de escritores portugueses que leva na artéria a inquietude criativa do chão insular vulcânico. Soma-se ainda o exercício de funções como guionista para cinema, dramaturgo, autor de programas radiofónicos e televisivos.
É colaborador permanente da revista Ler (Círculo de Leitores), onde assina o espaço Provedor do Leitor (ou Como fazer amigos na literatura).
Até Julho de 2011 era responsável e principal personagem do programa televisivo “Melancómico”,que voltou em livro. “Melancómico – O livro” (Atelier Escritório Editora), reúne aforismos, mais literários que sentenciosos, sobre a vidinha simples, delicada e algo poética de um cidadão moderno comum, perdido entre o sentido da vida e o mundo das ofertas e sufocada pela asma.